Xica Delícia, de Bruno Flores
Xica
Delícia
O
povo de Manacapuru jamais se esqueceria do dia em que Francisca da
Silva, a Xica Delícia, seria eleita vereadora. O sucedido daria o
que falar nos periódicos regionais, atraindo visitantes de povoados
vizinhos, ansiosos por conhecer a rapariga vereadora. Mas os
falatórios de momento resistiriam ao passar das vazantes e ganhariam
espaço na memória coletiva. Anos depois, não haveria quem passasse
pela praça principal de Manacapuru e não fosse tomado por uma
insólita curiosidade pelo busto de mármore que ali reinava: uma
índia sexagenária, de cabelos esvoaçantes e decote expondo sua
volumosa natureza.
Xica
Delícia, a rainha do Solimões.
Chegara
sozinha em Manacapuru, aos catorze anos, após sua tribo Ianomâmi
ser devastada por grileiros no Médio Rio Negro. Vagava pelo cais do
porto entre bares e camelôs, e logo ficou conhecida por sua
inigualável ternura.
Alugava na época um quartinho na pensão da dona Inês, que fazia
vista grossa para o
vaivém de estivadores e viajantes
com quem a pequena se deitava em troca de alguns cruzeiros. A
jovem Francisca tinha um toque quase celestial em sua precisão, uma
boca aveludada capaz de provocar delírios. Acalentava em seu leito
tanto meninos inseguros e ansiosos por perder o cabaço, quanto
homens barbudos, de modos grosseiros e toques bestiais. Para ela, não
havia diferença. Proporcionava prazer com a mesma dedicação e
afeto; e sua magia surtia sempre o efeito desejado: desarmava,
cativava e, por vezes, apaixonava.
Com
o tempo Francisca assentou e criou laços em Manacapuru. Mas esse
mesmo tempo era implacável em sua dualidade, e com ele vieram também
as ruínas. Murcharam a pele e os seios, o olhar, antes vivo,
empalideceu, o vício no álcool e os rebentos que nasceram sem pai
deixaram nela um bucho permanente. O dinheiro que entrava era logo
transformado em comida para os filhos ou reparos no casebre de
madeira e teto de zinco para suportar a temporada de chuvas. O pouco
que sobrava, diluía em cachaça.
Era
um ano como outro qualquer, quando chegaram as eleições municipais.
Xica, como sempre, nem cogitou se envolver. Contanto que seu ganha
pão não sofresse qualquer censura, e nada em vinte e quatro anos
indicava que isso pudesse acontecer, ela preferia deixar a política
para os cabras que entendessem alguma coisa do assunto. Seu negócio
não passava por aquelas decisões práticas da administração
pública. Cada um deve seguir sempre sua vocação, seu chamado
divino, e o seu eram as maquinações do corpo, da alma, provocar
aqueles espasmos de prazer desvairado tão fugazes quanto
necessários.
Mas
calhou do destino interferir com seus caprichos na monotonia de
Manacapuru, e deles a Xica Delícia não conseguiu escapar.
A
cidadezinha vivia um momento de sublevação contra o prefeito
Jacinto Donizete. Recentemente, sacos de lixo haviam sido lançados
na casa de Donizete como protesto contra o esgoto a céu aberto nas
ruas, fruto da paralisação dos serviços de coleta. Em outra
ocasião, dezenas de funcionários públicos da saúde com salários
atrasados tinham jogado baldes de tinta nas paredes da prefeitura. Em
meio a borrões de tinta colorida que compunham uma espécie de arte
moderna surrealista no edifício mais conservador de Manacapuru, uma
pintura rosa choque chamou a atenção de todos: um pênis
monstruoso, veiudo, penetrando nádegas miúdas e frágeis, com
sangue escorrendo pelas laterais do ânus violentado. Do pênis, saía
uma setinha com o dizer “Prefeito Donizete”, enquanto a bunda era
referida como o “povo de Manacapuru”. Foi o estopim para um clima
generalizado de revolta, com quebra pau e algumas prisões
arbitrárias.
A
ideia da candidatura de Xica Delícia surgiu um dia no cais em tom de
chacota, alguém mencionando que o partido de oposição só tinha um
bando de “bunda rachada” para lançar como vereador. Mas logo
Valdemar das Neves, piloto de recreio que fazia o transporte entre
Manacapuru e Manaus, vislumbrou uma oportunidade. Foi ele quem
convenceu Xica a participar, e a candidatura ganhou o apoio de
feirantes e barqueiros.
O
único material da campanha foi um santinho onde ela aparecia
maquiada, de batom vermelho e seu habitual decote, com os dizeres
“Por
uma política sem malícia, vote Xica Delícia!”
O
resultado surpreendeu até os mais otimistas. Ela ficou em quarto
lugar, com 2,2% dos votos, numa campanha com custo declarado de 150
Reais. Francisca da Silva, a Xica Delícia, mulher da vida desde os
catorze, passou a receber um salário de 7.800 Reais e verba de
gabinete de 3.500. Pôde nomear também outros quatro funcionários,
mas escolheu apenas dois: Valdemar das Neves, seu patrono na
política, e Josué Guenta Cana, feirante, bêbado oficial e um de
seus clientes mais assíduos.
No
dia de sua posse, Xica organizou um sopão para as colegas de ofício
no bar Risca Faca e se comparou à personagem bíblica Maria
Madalena. Chorou ao se lembrar de uma recente emergência médica da
filha caçula, que teve de ser transferida a Manaus e operada no
estômago. Quase morrera na travessia, a pobrezinha. Como vereadora,
ela prometeu lutar para construir em Manacapuru um hospital equipado
para cirurgias como aquela.
Enquanto
alguns diziam não esperar nada da tal rameira na câmara, que sua
eleição já serviria de protesto contra a política suja e
mesquinha que dominava Manacapuru, a vereadora Francisca da Silva
cuidava de salvar vidas. Inclusive a sua própria.
Conto vencedor do encontro de 23/07/2018
Bruno Flores é escritor, jornalista e viajante. Publicou o romance “Rumah” (Multifoco, 2015), aventura épica sobre um povo neolítico do Pacífico Sul, após uma viagem de pesquisa pelos arquipélagos de Fiji, Vanuatu e Tonga. Tem dois artigos publicados em livro de homenagem ao centenário de Jorge Amado e contos em revistas literárias, portais e blogs.
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