Desamparo, de Fred di Giacomo (mote)


Naqueles tempos, as coisas mudavam depressa que em um único dia havia ocorrido um casamento, um velório e a chegada de Maria Chica que já despertava intensas paixões en Nosso Senhor dos Passos. Bastou João Capa Negra - cavanhaque e peito largo, aos dezessete anos - pousar os olhos na recém-chegada Maria Chica do Carmo para saber que, assim como todos os homens da família, seria profundamente infeliz no amor. A súbita morte de Frutuosa Bugreiro encheu de esperanças o coração recém-descoberto de João Antonio Capa Negra, ao ponto de fazer com que não consumasse sua noite de núpcias com Lia, afim de guardar sua virgindade para a viuvinha que falava a língua dos pássaros, atirava como homem e calculava perfeitamente, mesmo sem saber ler e escrever.
Mas os versos românticos de Alexandre Ferreira, ainda que copiados de Manoel Maria du Bocage, pareciam imbatíveis. A batalha estava ganha antes mesmo de Frutuoso Bugreiro espumar e uivar até seu coração felpudo parasse de bater. Maria Chica precisava desvendar o mistério das quatro letras que havia passado seus dezesssete anos  escutando, mas nunca experimentara. Quando finalmente descobriu o que era amor, casou-se um mês depois de enviuvar, para horror das mulheres locais que sempre se lembravam do exemplo de outra Maria Francisca, a capa negra, que até desaparecer usara um manto negro em homenagem ao marido morto.  Em quartoze anos, Maria Chica e Alexandre Ferreira tiveram dez filhos, sendo o que mais lhe preocupava era Joaquim, filho homem nascido depois de sete mulheres, que podia, fatalmente ser lobisomem, Só de lembrar do finado esposo uivando até morrer, Maria Chica rezava um rosário inteiro para que seu filho não passasse esta desgraceira parecida. Por isso, prometeu meter Joaquim no seminário tão logo ele completasse quartoze anos e ficou perocupadíssima ao ver que, antes mesmo dos onze, o menino já apresentava penugem no rosto, nos sovascos e nas partes íntimas.
A paz era tamanha que Antonieta, pela primeira vez em sua vida pôde ouvir o silêncio. Kaingans e colonos viviam por ali com certa harmonia, cada um falando um pouco a língua do outro. Não era comum haver escravos naquelas bandas porque os fazendeiros não tinham dinheiro para comprar africanos, e escravizar nativos seria visto com declaração de guerra. Os Kaingains eram liderados pelo põ' í bang Congue-Huê. Lia  gostava de Congue,  assim com tudo era natural daquela região quente e seca  e selvagem. João Antonio talvez por ciúme dizia que o põ' í bang era velhaco e mal. Congue-huê podia ser velhaco e mal, mas chefiava dois mil arcos, então era melhor não repetir calúnia.  Ao longo daquela década que passou feliz e intensa, a melhor opção para os Castros, os Moreira, os Pinto Caldeira e outras famílias que chegavam por lá era respeitar os nativos e fazer negócios com eles. Os brancos trocavam metais, espelhos facões, cachaça e tabaco por mandioca. milho, araras e algum trabalho. Havia Kaingangs nas roças de algumas fazendas, trabalhando com guias e reunindo gado desgarrado.    

Editora Reformatório, 2018


mote para o encontro de 24/07/2018 lido por Fernando Andrade



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