Diatribe, por Vivian Pizzinga



Meu nome é Charlotte. E também Douglas. Muitíssimo prazer. Charlotte Douglas nos dias pares, nos dias ímpares tudo muda de figura. Sou, então, Alexander. E também Maria. Meus cumprimentos, Alexander Maria nos dias ímpares. Tenho atributos ambíguos e capacidades múltiplas, e conforme a hora do dia sou também Renata. Renata Alexander Douglas, depois das seis da tarde, quando o metrô é um apinhado humano de humores, odores e o que mais couber no vagão. Dizem que não sou flor, que não sou flor que se cheire, que sou cheiro sem flor. Não gostam de mim porque sou Lilian quando em viagem a negócios. E também Débora. Lilian Débora com uniforme de executiva, mas de férias sou Paulo. E também Jaime. Paulo Jaime se o hotel é cinco estrelas, se a orla me apetece, se o chopp estremece na tulipa. Não gostam de mim porque exalo (é o que dizem) certo odor de paranoias antigas e coletivas, não sou flor que se queira. A azia não me pertence, mas querem imputá-la a mim, porque sou Lilian Jaime Charlotte, quando fujo das conferências para conhecer a banda podre da cidade. Gosto das bandas podres, as minhas são inúmeras, e por isso certa azáfama de inveja se faz notar quando estou por perto, um bulício de comentários carregados de despeito, mas cago (verdadeiramente cago) para os olhares nervosos, ando para a peçonha que escorre lentamente pelo queixo quadrado e, como se nada mais quisesse de si, pinga e estrala no chão sem emitir ruído. Temem a mágica que produzo, sou demoníaco e diabólico e tudo o que seja sinônimo dos quintos dos infernos (é o que dizem, é a minha reputação, acolho-a). Têm horror a mim e a tudo o que me diz respeito, porque sou Douglas Maria Renata, se me querem no comando, mas sou também Paulo Jaime Charlotte, se me querem submisso. Prazer, sou Lizandra. E também Bob. Lizandra Bob se me que querem feminina, perfume francês, Guerlain, olhar lânguido, e Bob Lizandra, se me querem particularmente cabra macho, fragrância típica de rodoviária em construção. Sou todas as coisas encapsuladas dentro de cada um e sigo em frente, empinando o que fica na parte de trás de mim. Não tenho medo de dizer que sou Aquiles, em dia de eliminatórias da Copa, e sou Joyce, em noites de despedida. O prazer é todo meu, Aquiles Joyce a seu dispor, e, pasme, sou capaz de recitar em voz alta poesias que falam de vermes, que enaltecem o catarro, sou Augusto quando a memória está boa, e sou também Diógenes, mas apenas quando o dedo não me indica o melhor caminho, Augusto Diógenes para o que der e vier, Diógenes Augusto Lizandra, quando resolvo não aparar a franja. Quando a preferência é chá e torradas, sou Demétrio, quando a escolha é café e cigarros, sou Tomás. Este é meu cartão, Demétrio Tomás, para quando o banquete não tiver hora para acabar. Odeiam-me por isso, querem ser Aquiles Joyce, e também Charlotte, repudiam minha facilidade em ser Alexander, não possuem uma voz tonitruante como a minha quando sou Aquiles Joyce e escarro na cara dos pedantes, invejam descaradamente a Lilian Débora que mora nos cantinhos revoltos – caleidoscópio visceral – do meu estômago, esse meu estômago que nunca me dá paz. Detestam-me porque sou ambidestro. E sou mesmo. Não posso fazer nada. Não posso, não quero e não vou fazer nada. Meu nome é João, sempre que me sobra algum desespero para embalar a noite. Tenho força para lidar com ele, sei de cor a ordem certa das veredas. Apaixonei-me por um homem-mulher, não passo de um hífen na existência alheia. Gozo nos intervalos entre os trovões, o ruído é impertinente, confesso. Vizinhos reclamam, o síndico anotou no livro de ocorrências. Há ocorrências, retruquei, inevitáveis. Sou João Euclides quando erro os exercícios de matemática, mas sei usar a crase de modo impecável, sou Euclides João nos acertos gramaticais. Não me suportam por essa lista de habilidades provectas. Detestam-me por ter a visão lateral tão bem desenvolvida, mas quero que se danem. Quero que se fodam, esses que me odeiam, quero que se fodam, todos juntos e de mãos dadas. E me desculpe qualquer coisa.

(conto vencedor do encontro de 26/06/2018)

Vivian Pizzinga é psicanalista e escritora. Lançou dois livros de contos (A primavera entra pelos pés, 2015; Dias roucos e vontades absurdas, 2013), ambos pela Editora Oito e Meio. Participou de antologias de contos (Clube da Leitura vols. I, II, III, IV, Para Copacabana, Com Amor) e publicou textos ficcionais e de prosa poética no Jornal Plástico Bolha, na Revista Pesquisa FAPESP, na Revista Café Espacial, entre outros. Escreve críticas teatrais e outras resenhas para o site Ambrosia e contos para o Jornal Algo a Dizer. No momento, prepara-se para o doutorado em Saúde Coletiva e finaliza um romance.


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