Fluxo, por Carmen Belmont
Fluxo, por Carmen Belmont
______ era como se sentia quando se levantava de
madrugada sem nem ao menos ter dormido é que ficava insone com tantos
pensamentos fervilhando na cabeça tentando colocá-los entre palavras e traços no papel isso antes de
trocar o papel pela telinha do smartphone porque concluiu que era mais fácil
para escrever ou desenhar deitado no escuro do quarto desenhava letras e bichos
e monstros e árvores e horizontes e personagens e cenas coloridas
freneticamente como se não houvesse mais tempo e tivesse que deixar aquilo para
que alguém o conhecesse já que no cotidiano ele não tinha rosto era tão
invisível e hermético quanto os outros no meio dos demais e estava cansado
queria descobrir uma necessidade um sentido uma bebida uma droga uma sensação
um lugar uma pessoa qualquer coisa não ligava se isso era o que qualquer um
poderia pretender pois tinha certeza de que a sua falta de resposta doía mais e
era tão única como ele próprio só que apenas ele sabia que nada ele não sabia
de nada nadinha nem do que acontecia ao redor ou na sua própria vida ou mesmo o
porquê acontecia pensou naquela sem-vergonha que havia deixado aquele vazio não
mentira ele já era meio oco mesmo quando fazia aquela imitação perfeita de
pseudointelectual que a profissão recomendava aliás a esse propósito nunca
tinha abdicado de ostentar aquele visual classe média limpinho mas desligado de
aparências cuidadosamente construído óculos de aro metálico calças jeans
surradas até a alma camisetas de malha de algodão com estampas pop-rock-contemporâneo-tô-nem-aí-para-o-que-está-escrito
ah e é claro uns bons mocassins camaleônicos que iam muito bem também com uma
camisa de linho branco solta e descolada que de vez em quando ele usava nunca
tinha entendido por que depois de um tempinho ela começou a torcer o nariz para
os gostos e hábitos dele pois no início ela achava tudo um charme e parecia que
justamente esse charme todo a tinha atraído para ele se bem que não era bobo
nem nada já tinha estrada suficiente para saber que nas relações amorosas o
período cor-de-rosa passa rapidinho mas mesmo assim como ela estava durando
mais que as outras seu inconsciente talvez tenha abaixado a guarda e foi aí que
a interferência pipocou pra todos os lados uma vez foi porque não tinha
concordado quando ela insistiu em mudar a forma de ele se vestir comprando
aquela jaqueta de couro quente e cara pra dedéu ora bolas logo ele que quase
não sentia frio pensava ser muito mais sensato se esquentar usando um copo
cheio ou um corpo esteio raramente um casaco metido a besta se fosse o caso de
um clima frio se é que pode se chamar de frio nossas amenas temperaturas
tropicais preferia camisas de manga comprida ou suéteres ou uma jaqueta de brim
escuro em situações extremas mas também não foi só isso ela queria ficar
trocando mensagens de texto românticas ah ele não tinha paciência pra esse
nhém-nhém-nhém dos apaixonados não que não estivesse gostando dela é que ele
era um cara prático desses cujo telefone servia só para falar e ainda assim pra
dizer o básico do básico ou seja o necessário para marcar o próximo encontro
nem de e-mail ele gostava embora tivesse um pois tinha sido praticamente
obrigado já que a chefia agora mandava os avisos relevantes sobre horários conteúdos
e reuniões chatas de comparecimento inarredável para o dito e-mail mas o que
ele gostava mesmo era de tomar cerveja no bar perto de casa ah como é bom
segurar um copo gelado e levar aquele líquido dourado à boca num lugar
despretensiosamente cheio de gente que com a desculpa de beber adora jogar
conversa fora também curtia dedilhar um violão cantando com sua voz rouca para
aquele bando de bebuns os versos primorosos de nossos poetas populares e claro amava os encontros tetê-à-tête com ela ih falando assim os
filhos iriam rir dizendo pai como você é antigo mas ele era de fato então
gostava assim tetê-à-tête para poder
sentir aquele cheiro bom que vinha da pele e da carne dela quando eles se
comiam de todas as maneiras até caírem exaustos de prazer ah mas esse negócio
de não ser ele mesmo ele não curtia não então se o preço eram as madrugadas
solitárias insones e solenes que assim seja murmurou erguendo a tulipa
(Conto lido em 18.10.16 (terça-feira) no Clube da Leitura, realizado na Casa Rio)
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Fascinada pelos ecos da linguagem escrita, Carmen Belmont lê e escreve desde que se entende por gente; tudo o mais é adendo. "A palavra/ alva/ alvará da imaginação". (Imagem: @cdbelmont in PicsArt)
Parabéns !!! Só ao final do conto que fiquei um pouco confusa...
ResponderExcluirOlá, fico feliz que tenha gostado, obrigada! Se puder esclarecer algo, estou às ordens!
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