Recordar - André Salviano
Recordar
Minha memória é baú velho, empoeirado. Às vezes dá vontade de abrir e
brincar com o que tem dentro, noutras apenas o esqueço em um dos cantos da casa
por dias, meses. Minha avó dizia pra eu só voltar ao passado se necessário, era
uma mulher pragmática, que tanto me ensinou. Às vezes é preciso abrir a tampa para
enfiar algumas coisas lá dentro, e nessas horas, mesmo que eu queira recordar, evito
remexer no que já lá está. Foram tantas as dores na infância: de dente, ouvido,
queimaduras, ralados, da solidão, o medo do escuro. Voltar nunca é tão bom,
voltar é complicado, ainda mais agora, mas também é, como diz o mestre Paulinho
da Viola, quase sempre partir para um outro lugar. E de que lugar eu falo
agora? Será que tudo que se acumulou nesse baú ao longo dos anos me define, ou
tenha me formado? Eu falo pra mim? Pra quem já me deixou? Pra algum dos espelhos
que se espalham por onde passo e me reflete? As dores de cabeça eram curadas
com rodelas de batatas inglesas, que ficavam pretas depois de um tempo, eu
achava estranho passar minha dor para um legume, mas minha mãe apenas dizia
para deitar na cama e relaxar, quarto a meia-luz, o dimmer controlando a
escuridão. Assim que a dor passava, eu gostava de ficar olhando pras telhas de
cerâmica que se espalhavam apoiadas em madeiras, lendo o que estava escrito
nelas: o nome da olaria, o ano de fabricação da telha, de que cidade vinham —
geralmente de Itaboraí. As casas dos meus amigos eram feitas com laje, e eu
ficava com pena deles, porque ao se deitarem, seus tetos não lhe contavam
história alguma. De todas as feitiçarias que minha mãe fazia pra me curar de
minhas dores, a que mais me marcou foi quando tive dor de ouvido. Penso que a
dor de ouvido só perde para a de dente. Eu chorava, não conseguia falar sem
doer, tinha menos de onze anos, acho, minha mãe me olhava com ternura, sentia
pena de mim, mas não se abalava com meus gritos e lamúrias, ela sabia o que
precisava ser feito, dizia serena: “Deita, filho, mamãe já vai fazer essa dor
passar, fica quietinho, já volto”, ia até a cozinha e retornava com um chumaço
de algodão meio amarelado, e enfiava no meu ouvido, morno e molhado, era o que eu
sentia, passavam-se uns minutinhos e meu suplício perdia toda a dimensão de
antes, a dor se reduzia a quase nada e eu acabava adormecendo com os afagos da
minha mãe em meus cabelos, que cantarolava algo baixinho, mas do mantra que se
repetia a única palavra que consigo lembrar até hoje é azeite.
Meu baú carcomido pelo tempo também tem outras palavras, outros sabores.
Ainda assim fico dias sem abri-lo, ou mesmo passar por ele.
─ Senhor, sua Salada Niçoise.
─ Por favor, não esqueça meu azeite
predileto.
─ O Venta del Baron, senhor?
─ Sim.
─ Trago agora mesmo.
─ Obrigado.
Conto escrito para o encontro de 19/01/2016
André Salviano é formado em Letras pela
UFRJ. Já participou de algumas antologias, prosa e poesia, mídia impressa e
eletrônica, como o Prêmio UFF de Literatura 2009, categoria conto, e o e-book
Não é só por 20 contos (http://www.skoob.com.br/files/ebooks/20-contos.pdf). É
um dos fundadores do blogue Confraria dos Trouxas (confrariadostrouxas.com.br),
onde escreve todas as terças desde 2010. Admirador da alma feminina. Torcedor
do Flamengo. Sempre que pode bate ponto no Maraca. Gosta de suco de melancia e
do pôr do sol no Arpoador. Não dispensa um chopinho regado a bom papo. Mora em
Laranjeiras, mas vive na Lapa.
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