Nascimento - Walter Macedo Filho
Nascimento
Assustei
quando minha tia perguntou o que eu fazia sentada com as duas mãos entre as
coxas, as palmas abertas e viradas para fora a massagear minhas virilhas num vai-e-vem
automático, desce-e-sobe ritmado. Não era eu. Era meu corpo. A imagem congelou:
ele tirava a camisa, o cinto frouxo fez a calça escorregar parando em diagonal,
abaixo da cintura. O que eu não via, imaginava.
− Saia daí. Deixe seu pai terminar
de se arrumar.
De
uma só vez descobri o desejo, o pecado e a culpa. Eu faria 12 anos dali a três
meses. Ele olhou para o canto onde eu estava e lançou uma piscadela para mim. Nunca
mais me foi possível ver o torso despido de um homem sem que aquela imagem
viesse em relâmpago à minha cabeça.
No
começo eu tentava reprimir de qualquer forma, fosse negando, fosse desfazendo
relacionamentos que ainda estariam para se formar só porque tinham alguma
relação com o que vi naquele momento. Passados os anos, cedi.
Na
primeira semana que parei de resistir, os sonhos foram contínuos. Noite após
noite, eu despertava assustada, suada e saciada. A cada novo sonho tudo se
repetia, do princípio ao fim, em cenas variadas e ricas nos detalhes. Os odores
e perfumes, sabores e sons eternizavam-se no ar abafado do quarto escuro por
aqueles instantes longos e confusos em que eu tentava me localizar de volta neste
mundo.
Roberto
não se parecia em nada com meu pai. No mapa do meu desespero foi a trilha que
escolhi para fugir de mim mesma. Condenei-me àquilo. Sair, comer alguma coisa,
assistir um filme, eram momentos divertidos, suportáveis. O contato físico
porém me destruía.
Quando
ligaram da empresa onde ele trabalhava para me avisar o que tinha acontecido,
foi um grande alívio. Já no hospital, tentei disfarçar o quanto pude a
indiferença ao receber a notícia da sua morte. Apenas limitei-me a perguntar se
ele havia sofrido, mas não me lembro da resposta.
Renata
nunca tinha me abraçado daquele jeito. O fato de ser irmã de Roberto, e
portanto, minha cunhada, fazia de nós parentes, quase irmãs. E eu a tratava
dessa maneira, com a frieza habitual com que agimos com as pessoas mais
próximas. O abraço de consolo que me deu ao saber da morte do irmão e da minha
nova situação de viúva fresca rompeu a barreira da nossa indiferença mútua. Senti
os seios mais volumosos que os meus espremendo-se em mim. Demoramos na conversa
de corpos, que nunca havia acontecido. Tateei suas costas e fui correspondida. Empurrei-a
contra mim e repousei meu nariz sobre seu ombro. Seu perfume fundia-se com o
suor delicado. Um conforto percorreu minha nuca. Não entendi suas palavras,
ditas no tom-sussurro que há nos votos de pêsames. Traduzi da maneira que me
era conveniente. Fechei os olhos e suspirei fundo. Nascia o amor.
Conto escrito para o encontro de
19/01/2016
Walter Macedo Filho é dramaturgo, jornalista,
roteirista, escritor e gestor cultural. Integrou o Círculo de Dramaturgia do
Centro de Pesquisa Teatral, coordenado por Antunes Filho. Como gestor cultural,
atuou no SESC São Paulo, Arena Carioca Dicró, Biblioteca Parque Estadual e
Instituto Augusto Boal. Publicou seu primeiro livro de contos, Nebulosos, pela
Editora 7Letras. Atualmente escreve o roteiro para o novo filme do diretor
Paulo Thiago após ter desenvolvido o argumento.
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