Fatal Rendezvouz & consequência - Márcio Couto
Fatal Rendezvouz & consequência
Deram-me o nome de Euríale, nome de medusa, aquela que vive ao largo, que
ao largo se embriaga, ao centro se atravessa, residindo na fronteira de si,
evitando a córnea de oblívio onde um dia se extinguirá, e Euríale sou desde
então, perdida no outono de meus pesadelos, e desregrada envergonhei mamãe,
quem se chamava Atena, quem achou engraçado dar à filha o nome da terceira das
górgonas, cuja beleza a deusa da sabedoria amaldiçoou por não suportar a enorme
semelhança que partilhavam, e mamãe me detestava por minha curiosidade de
cortesã, e me limpava a baba de creme de abóbora por obrigação, vendia as
roupas do corpo por fraldas não por amor mas porque via em minhas pernas
borradas de merda o crime pelo qual jamais receberia indulto, quando me
enlaçava os cachos e me despejava cânfora na nuca não era para me ver livre da
febre e ranho mas para sentir-se no controle de algo, tornei-me livre assim que
soube como amarrar os sapatos, como deslizar de prancha na areia molhada, como fazer
das misturas de shampoo e condicionador um elixir da juventude, como defender
minhas onze fazendas de doces e sabonetes no reino dos meus sonhos, e hoje
frente outra vez a estas paredes de tinta descascada ainda enxergo contornos de
arranha-céus e cordilheiras cisalpinas, e hoje superada esta casa ainda guardo
o dia em que beijei Eulália na virilha para sentir o sumo azedo de sua
menstruação vencida, foi horrível, foi maravilhoso, sobretudo ao me contorcer
com seus dedos ágeis me acariciando os intestinos e rodopiando em minha alma
como fadas de fogo no epicentro de um furacão, e vivi três anos entre Pothos e
Himeros e sobrevivi a cada acesso de orgulho de um e histeria do outro, e os
abracei e fiz deles um adendo de meu coração, como um apêndice dourado
enroscado ao pescoço, sufocando até o oxigênio explodir as vísceras, quando
adulta meus buracos de agulha abriam e fechavam para o próximo pico, ávidos por
um segundo idêntico a quando na adolescência os alimentava com fenilciclidina e
fenobarbital dissolvidas num lago dourado, amparadas na concavidade de uma
colher, a sopa de néctar abria caminho pelas veias levando a palavra do messias
Nosso-Senhor-Jesus-Cristo-dos-Bastardos-Sem-Pai-Nem-Mãe-Tampouco-Consciência
aos mil cavalos das sombras vagindo demolidos em meus pulmões, os pés distantes
do chão e calibrados por um mosaico de penas de Estínfalo, e esfregava a língua
seca no teto da igreja para sentir-me novamente parte do plano divino, e a
igreja tremia de gozo onde quer que minha língua tocasse, gozava com os anjos e
as freiras e os trezentos milhões oitocentos mil quinhentos e setenta e quatro
apóstolos mortos na sacristia, um para cada vez que o padre me arrastou ao
confessionário, e mamãe esqueceu de meu décimo nono aniversário pois tinha de
deslocar as estantes com porcelana germânica da antessala do escritório até o
vestíbulo, isso porque lá a luz do sol não esturricava a tinta dos quatorze
pratos seculares, e o vidro não superaquecia correndo o risco de rachar, só que
nossa casa era tremendamente fria, da glacialidade das mãos de um homem santo,
às vezes da clarabóia do meu quarto dava pra ver as estrelas durante o verão ou
equinócio, mas nem sempre, pois havia meses em que as nuvens se fechavam numa
treliça de gás púrpura, era bonito mas assassinava a visão do estrelário norte,
do Quadrante de Virgem, de Cassiopéia e das bilhões de anãs e nebulosas
emboscando Andrômeda no regaço escuro onde se esconde o massivo buraco negro
que a sugará um dia, por que acha que o botão vai pular, Adonis? não é assim
tão difícil vai, ah! mas cê é muito teimosa, Euríale! falei que cê tava
gordinha e tudo, por que nunca me ouve? para de bobagem, não sou gordinha, sou
saudável, né mamãe? mamãe? onde será que pus minha camisola de seda? manhê! o
que? ah! o que você quer, Euríale? a senhora me acha gordinha? ah! tanto faz,
menina! vuuuussshhh!!! fazia o vento sob o vestido nos cultos dominicais de
inverno, os garotos viam minhas pernas roliças e babavam, mas eu só queria
Eulália, e quando mamãe Atena descobriu, foi um pega-pra-capar correndo solto
nas cercanias de meudeusdocéuláondeeumoravaesquinacomfazdeconta, e me viravam
de ponta a cabeça e me penduravam no galho do álamo da varanda e me rasgavam o
couro com vara de marmelo e só depois que minhas coxas desenhavam uma zebra de
sangue o padre me tirava da forquilha, daí eu voltava pra casa e me trancava
com algum menino estúpido no quarto e o exibia meus lábios internos e ele
vomitava uma gosma ocre rajada de violeta que espargia por meus tornozelos,
minhas canelas, e por cada centímetro cúbico do azulejo de porcelanato do
quarto, então a
senhora-minha-mãe-deusa-de-todas-as-porcelanas-e-odiadora-de-todas-as-górgonas
me enfiava o cacete duas vezes, uma pela imundície no chão e outra pela
imundície entre minhas pernas, então meus desejos recuavam às frestas do
guarda-roupa, ofendidos e esquálidos, mas hoje destas mesmas paredes só
escorrem sonhos, mamãe me estendeu a mão há duas horas me olhando fundo com
seus olhos de miosótis e dragão, entrevada num resto de esponja e mola, como se
fosse um monolito de medo, e contraiu os lábios pedindo para que eu a limpasse
a urina, secasse sua baba, lavasse sua merda, banhasse suas costas... Um tumor
de silêncio floresceu entre nossos lábios, daí lembrei de sua frase favorita:
‘a vida é um osso na garganta: e arranha porque a gente engole seco’. Por fim,
Atena me segurou a mão e disse: filha minha, górgona de meu ventre, olhe para
mim e faça-me pedra.
Conto escrito para o encontro de
19/01/2016
Márcio Couto faz livro, arrisca poesia, e vez ou outra é pintor. No Rio
nasceu e se desfolhou feito planta, só que diferente.
Adorei !
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