Não tem pra ninguém - Marco Antonio Martire


Não tem pra ninguém

Felícia acordou meio indisposta, mas lembrou logo que era dona de uma bela bunda. Uma bunda que ela balança no quarto diante do espelho, que empinada no salto levanta muita piroca, uma bunda que sim pisca e acorda todos os pares de olhos, uma bunda, uma bunda, uma bunda capaz de comandar qualquer trepada. Felícia de costas surpreende os homens e provoca ejaculações, possui uma bunda consciente, que arrepia e induz gozos de tremedeiras, uma bunda que próxima de janelas enlouquece os edifícios, as varandas. Uma bunda que não é simplória, tem mistérios, uma cicatriz pequena, de uma nádega menor do que a outra desde o nascimento, corrigida com uma plástica profissional. Uma bunda então simétrica, que examinada por um comitê olímpico levaria medalhas para casa, para a cama, para o mais luxuoso dos chuveiros, onde se pode afirmar que apara a água, ficam uns pingos ali, formando um laguinho. Uma bela bunda, uma bunda, uma bunda que os motoristas procuram no tráfego para esquecerem do trânsito, uma bunda que senta na direita e na esquerda estabelecendo o que é delícia, uma em que se já derramou leite muitas vezes. Uma bunda que sabe a hora de tirar a roupa, imagina a bunda de Felícia antes da calça, uma calça que veste uma bunda que pára o shopping, dentro e fora das lojas, as outras bundas murchas de darem por dó aos vagabundos. É uma bunda que amanhece perfumada, bunda com um poder de façanha, capaz de calar congressistas, bunda que sonha fazer amor nas limusines dos astros de rock, bunda tal que é prejuízo nas reuniões de condomínio, bunda que é uma assembléia, quem vai comer, quem vai comer, pois no restaurante essa bunda é um acidente: Felícia tem uma bunda que os garçons não conseguem servir, já que pensam em jantá-la onde esses acidentes acontecem, uma bunda que a cozinha não vê embora sinta o cheiro, quem não sente o cheiro bom de uma bela bunda? Que bunda! Que vontade de apertar a bunda da Felícia, uma bunda tão cuidada que não pode com a inteligência dos salões de beleza, uma bunda estonteante diante do espelho, no quarto onde descansa depois de tantas emoções. Esta bunda da Felícia merece com certeza descansar, principalmente porque todos os dias movimenta o mundo. É uma bunda que faz cair governo, que poderia estrelar filmes se os câmeras fossem homens honestos, uma bunda que já foi feminista e até maltratada, já viveu muito esta bunda da Felicia. Precisa até de um seguro.

É uma bunda maravilhosa e arrebitada como manda a tradição.

Ainda que Felícia diga para si, depois de despertar e diante do espelho:

— Nem vem que o cuzinho eu não dou. Não dou.


Conto escrito para o encontro de 27/ 10/ 2015




Marco Antonio Martire é carioca, formado em Comunicação pela UFRJ. Já publicou os contos de “Capoeira angola mandou chamar” e a novela “Cara preta no mato”, esta em ebook pela Saraiva. Escreve crônicas para a Rubem (www.rubem.wordpress.com) e resenhas para o Cabana do Leitor (www.cabanadoleitor.com.br). É fã do Clube da Leitura.

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