Uma luta, por Ana Claudia Calomeni

A luta humana, se resumida, não passa da luta do ser contra ele mesmo. As forças negativas, nestes tempos mais acirradas, empurram as positivas pro meio da escuridão. O ser mais racional vai me chamar de maniqueísta, vai dizer que simplifico as coisas. E eu vou ter que concordar. Sim, eu simplifico as coisas. E, sim, é uma construção maniqueísta de mundo. Quem não está sujeito a maniqueísmos que atire a primeira pedra. Quem nunca dividiu seus dias em bons e ruins? Como foi o seu dia hoje? Péssimo, respondo, é a minha rápida análise sobre um dia de extensas 24 horas em que mil coisas acontecem (talvez eu deva me exercitar pras sutilezas). Quem nunca sentiu vir lá do fundo da alma aquela pontada diante de um desejo prestes a se realizar e uma voz: isso não vai dar certo. É disso que falo. Há sempre um outro em mim que torce contra, que puxa tapete. Reconhecêlo é fundamental. Aceitá-lo, ainda que ele toda madrugada apareça pra me sacanear. Ele vai me comendo pelas beiradas, como se eu fosse um prato quente de sopa, até eu me acostumar com o desbaste. Porque é isso que ele faz: ele vai me desbastando, desbastando, desbastando, até não sobrar mais nada. É quando eu já sou só inconsciência e nem percebo que minha matéria vital ficou a mercê dos meus desejos abortados, dos meus sonhos adiados, das minhas forças não manifestas, dos dias que passam e eu nem sinto. Mas sempre chega a hora em que alguma coisa em mim pergunta “onde fiquei?”. É quando agarro a dúvida com força. Não fujo. Ah, tive que começar a trabalhar, ah, meu filho nasceu, ah, me apaixonei, ah, apareceu uma pandemia que levou um monte de amigo embora, ah, começou o carnaval, ah, ah ah... Mil desculpas. Lembrar-me de esquecê-las, antes que me impeçam de ... 

Há não muito tempo, andando na rua, observei fascinado umas moças e rapazes caminhando na minha frente. Cada um ali era uma totalidade, cada um ali cabia perfeitamente em si. Nada parecia sobrar ou faltar e eu conseguia sentir a matéria viva vibrando naqueles corpos. Havia um substrato ali reconhecível, latente e totalmente manifesto, sendo. Aquela cena simples, aquilo me invadiu como uma bofetada e eu pensei: onde me deixei? Eu também já fui assim. Já tive essa alegria, essa espontaneidade, essa certeza de que o lugar onde eu estava era onde de fato eu queria estar. E eu me dedicava inteiramente a ele, sem dispersão. É esse lugar que busco. Nada menos do que esse lugar. Me entregar a um sonho, a uma tarefa, que, por que não?, pode bem ser a de escrever. A transformo então no meu maior desejo. Foda-se a ameaça da página em branco, fodamse as críticas, foda-se o meu nariz torcido pro meu texto. Foda-se eu não saber por que escrevo. Escrevo, ora bolas, e isso deveria me bastar. Mesmo assim, tento responder, escrevendo. É que escrevendo me descubro um novo e, nessa descoberta, me desconheço, e sinto então necessidade de me descobrir de novo, e de novo escrevo, e de novo me desconheço. Acho que escrevo para desvendar o mistério de ser eu mesmo... 

Texto dedicado a Paulo Leminski, que um dia disse: isso de querer ser exatamente o que a gente é ainda vai nos levar além

(Texto apresentado no encontro de 21/04/2020)

Ana Claudia Calomeni é carioca, aposentada, tem dois filhos adultos, já publicou alguns livros em parceria com outros autores e costuma sempre achar que tudo vai dar certo no final.




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