Ambrosia, por Ana Claudia Calomeni

AMBROSIA

“Vou procurar flores wicca”, pensa Ambrosia e sai, resplandecente, pura e alva, de trás do véu das águas da cachoeira.

Ambrosia acabara de adentrar a adolescência, seu corpo, ainda aquele desconhecido, se transformava a olhos vistos. A moça, entretanto, não se dava conta do efeito que seus pequenos seios rijos, suas coxas bem desenhadas, suas ancas avantajadas, seus ainda escassos pelos pubianos poderiam causar nos homens. E assim ela seguia, firme e inocente, procurando as flores wicca, suas preferidas. 

Afasta-se, então, Ambrosia, mais e mais, das companheiras. As wicca são uma rara espécie de flor, que só crescem por aquelas paragens. São pequeninas e suas cores variam das mais brancas às mais rubras, passando pelas amarelas, alaranjadas, roxas. Há também as wicca azuis, mas essas, dizem, só os homens conseguem enxergar. Das rosas Ambrosia já está bem enjoada, eram as que ela mais via. E, pelo que ela havia sabido, atrás das wiccas rosas sempre há as azuis que, a depender da época do ano, agem como ervas daninhas para todas as outras, especialmente para as espécies brancas e rosas. E assim segue Ambrosia, deixando-se levar pelo caminho que os raios de sol entre os arbustos lhe indicam. É que justo naqueles círculos de luz, onde o sol é mais intenso àquela hora do dia, crescem as flores wicca. Ambrosia intenciona colher o máximo que puder, principalmente as azuis. Deseja enfeitar seus aposentos e sentir-lhes o perfume que exalam sempre ao anoitecer. 

Não muito longe dali, Ulisses desperta de seu sono profundo. Exausto de andar pelo mundo, ele interrompera sua longa trajetória para tirar uma breve soneca, mas, pela altura e calor do sol, percebe que acabou dormindo mais do que pretendia. Espreguiça-se, coça suas partes pudentas, como faz sempre que acorda e quase o resto do tempo também, enfia a cabeça na água do rio – não sem antes apreciar seus acentuados e brilhantes músculos – e pensa que é hora de voltar para casa, finalmente. Não é mais um menino, já está cansado de tanta batalha. Conquistou, pilhou, matou, amou, odiou, superou obstáculos. Merece parar agora. Enquanto se lava, ouve vozes. São vozes femininas, sinal de que deve haver uma cidade bem próxima dali, pois mulheres não conseguem ir muito longe. Animou-se um pouco mais com a possibilidade de estar, quem sabe,  perto de sua cidade natal, onde sua mulher deve estar esperando-o, ansiosa. Afinal, já faz bem uns 10 anos desde que ele saiu para comprar vinho. “Ela deve é estar morta de saudades”, pensa o orgulhoso Ulisses, enquanto coça as partes pudentas.

Ulisses parte então em direção ao que considera a sua última e definitiva aventura: voltar para a sua bela Penélope. Ele se lembra dela, com sua pele pura e alva, seu olhar submisso, sua fidelidade, seus seios transparecendo por baixo da túnica muito branca, suas pernas roliças, seus cabelos, suas mãos delicadas e incansáveis. Eis que Ulisses sente mexerem-se os ramos de folhas com que havia coberto seus órgãos genitais. Empolgado, lembra-se de Circe, das sereias, dos soldados. “Eeeeepaaaaa”, pensa. Justo nesse momento, o bravo Ulisses avista, no meio de um clarão, uma linda moça. Ela está de quatro, olhando de perto uma pequena população de minúsculas flores azuis. Ao avistar Ambrosia, ele pensa “que delícia!” e, confiante na sua pujança, porque assim a fome lhe manda, o divino Ulisses se prepara para irromper sobre a inocente moça. Ambrosia se assusta, grita, chuta o sujeito, mas ela não passa de uma menina e ele é um homem forte, vivido nas artes do amor. Quando enfim consegue tapar a boca de Ambrosia e dominá-la, quando enfim consegue fazer seu corpo de leão criado na montanha pesar sobre o dela, sente algo catucando as suas costas. Surpreso, Ulisses pensa “será que estou perto de homens dotados de falo?”. Toma coragem, pois ele próprio faria a experiência de ver, e vira-se. Consegue desvencilharse da bola de fogo que vem em sua direção, mas não escapa da voadora de Leto. Ulisses cai, desfalecido. 

Não sabe quanto tempo se passou quando acorda e vê Ârtemis, Leto e Nausica aos pés do seu catre. Enfurecido, tenta levantar-se para ir em direção a Leto, mas suas mãos e pés estão atados. Acima de sua cabeça está a linda, bela e pura Penélope. Ele respira aliviado e ordena que ela o desamarre. “Imediatamente!” Penélope responde que o fará, assim que terminar de tecer o sudário para seu pai, Laertes. 

No quarto ao lado, Ambrosia deleita-se com o aroma que as florezinhas azuis, colhidas nas cordilheiras de Taígeto, desprendem ao cair da noite. 

Conto escrito para o encontro de 05/05/2020 baseado no texto Nausicaa de Homero

Ana Claudia Calomeni é carioca, aposentada, tem dois filhos adultos, já publicou alguns livros em parceria com outros autores e costuma sempre achar que tudo vai dar certo no final.



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