O Caderno Vermelho, por Leo Almeida


Quando mamãe morreu, enterramos papai. Em seu luto, definhou por um mês sem sair de casa. Foi sua primeira morte. Foram trinta e três anos de vida em comum, entre o casamento e o noivado. Não nos surpreendeu a sua reação à perda, pois não esperávamos outra atitude de quem, por anos, foi muito distante e frio e agora, depois de testemunhar, impotente, o corpo de minha mãe ser lentamente devorado pelo câncer, percebeu-se só. Mas o que realmente o levou à derrocada foi a descoberta dos tais diários e do caderno vermelho. Cuidadosamente guardados entre as coisas de costura de minha mãe, os livros e cadernos foram encontrados por meu pai quando selecionava objetos para jogar no lixo e para doar. Primeiro, chamou-lhe a atenção a quantidade de textos escritos na letrinha miúda que ele reconheceu ser daquela que, sob sua ótica, despendia todo o seu tempo no cuidado da casa, no trato com a família, na preocupação com a comida, com a roupa passada, com os deveres de casa dos filhos, com a febre do mais novo, com a tosse do mais velho, com a sua farda sempre impecável. Em que momento ela se dedicava a escrever aquelas coisas? Foi seu primeiro pensamento. Sim, que hora do dia ela usava para preencher esses cadernos? De que se tratavam esses textos? Percebeu, logo no início, que ela registrava impressões gerais sobre a vida doméstica numa espécie de diário da vida cotidiana, assim encontrou o primeiro dia de aula de um filho, o primeiro dente que caíra, a chegada de parentes para as férias, nossas pequenas brigas, a preocupação com a febre reticente de minha irmã, a morte de meu avô. Tudo isso ela registrava com esmero, sempre com a preocupação de descrever claramente as sensações que tais eventos lhe causavam: esperança, medo, raiva, alegria, saudade, melancolia. Meu pai surpreendeu-se com essa preocupação em manter na escrita os momentos privados que ela testemunhava ativamente. Por quê? Em que residia o interesse em registrar que no dia 17 de março de 1976 “Maurício não dormiu bem à noite. Acordei assustada com o acesso de tosse. Um pouco de vick no peito e uma colherada de mel com limão. Acalmou-se quando o dia estava nascendo. Dorme agora feito um anjo.” Qual o sentido disso? Mas o que lhe pegou de surpresa foram os textos que, discretamente, estavam no caderno de capa vermelha. Ao abri-lo, pequenos papéis caíram no chão. Eram poemas rabiscados em letras minúsculas. Lindos poemas de amor e desilusão que ela escrevera em algum momento entre a passagem de roupa, a lavagem da casa, a costura de uma barra de calça, a fritura de pasteis, a faxina de um banheiro: “De novo a solidão visitou-me / sentou-se à mesa e fitou-me os olhos / comeu do meu jantar / sou tua companhia, disse-me”. Meu pai não reconhecia aquela mulher. Que estranha era essa que se apossara de sua esposa nesses momentos em que escrevia esses versos? “O ventre abriga uma flor / sem perfume e sem cor/ que nenhum homem colherá./ Quem sabe esse jardim/ de terra pisada e estéril/ não contemple minha botânica?” Continuou mergulhado na leitura e, a cada verso, percebia que a mulher que supunha conhecer como a palma da mão era muito mais que aquela que lhe emendava a farda, que lhe abria as pernas mecanicamente, que lhe aguardava acordada para servir-lhe um prato de comida. Quem era essa nova mulher? “O meu amor não sabe desse medo/ que minhas pernas guardam quando as fecho/ de que não mais se abrigue em mim/ seu desesperado jeito de desejar/ o meu amor é cego e meu ventre é mudo”. O velho militar, meu pai, percebeu que a figura de minha mãe se desconstruía dolorosamente em sua expectativa, dissolvia-se aquela imagem e surgia uma outra criatura, desconhecida e ameaçadora. Ele, que por anos a manteve como conquista saciada e conformada, um quase-objeto, quase-coisa, viu-se preso na armadilha de seus escritos. Sentia que estava novamente perdendo a mulher. Mas como perder aquilo que, agora ele desconfiava, nunca teve? “O fardo da existência deve ser leve/ pesada é a sobrevida de quem não tenta/ de quem persiste distante do abismo/ sem perceber que o abismo/ está em toda parte/ Eu arrisco o mergulho, toda queda me atrai”. Os poemas revelavam uma alma brilhante, absolutamente livre e distante de qualquer coisa que significasse rotina caseira e vinha daí o grande mistério. Como? A mesma mulher que me preparava o lanche da escola, escrevia, sabe-se lá em que momento do dia, “Não há remédio para Medeia/ a ideia permeia o tédio/ incinero a cria e me venero/ quem há de me julgar?/ Se o sacrilégio de uma vida perdida/ é tragédia maior que os próprios gregos?” Eram belos os textos. Sim, não eram apenas poemas. Havia um romance, incompleto, que perdeu-se no meio do caminho com as dores da quimioterapia. Alguns contos que renderiam um ótimo volume. Mas os poemas, esses eram belíssimos. Havia, é claro, altos e baixos, mas os grandes momentos eram muito maiores e deliciosos. Meu pai me ligou pela manhã e me entregou todo o material. Faça o que quiser com isso, ele me disse. Notei que ele passara a noite em claro, tentando reconhecer a mulher que pensava conhecer. Percebeu desconsolado que, por anos, havia uma joia rara em nossas vidas e que nenhum de nós se deixou ofuscar pelo seu brilho.

(Conto vencedor do encontro de 07/08/2018) 

Leonardo Almeida Filho (Campina Grande, 1960), professor universitário, escritor, reside em Brasília. Mestre em literatura brasileira pela Universidade de Brasília (2002), publicou, em 2008, o seu livro Graciliano Ramos e o mundo interior: o desvão imenso do espírito (EdUnB).  Alguns trabalhos publicados: O livro de Loraine (romance, 1998), logomaquia: um manefasto (híbrido, 2008); contos em Antologia do Conto Brasiliense (2004) e  Todas as gerações (2007) e pelo Prêmio SESC de contos Machado de Assis (2011); poesias em Poemas para Brasília (2004) e pelo Prêmio SESC de poesias Carlos Drummond de Andrade (2011). Publicou, com os professores Hermenegildo Bastos e Bel Brunacci, o livro Catálogo de benefícios: o significado de uma homenagem (Hinterlândia, 2010), que aborda o  cinqüentenário do escritor Graciliano Ramos. Publicou, pela Editora e-galaxia, Nebulosa fauna & outras histórias perversas (contos). Lança, pela Editora Patuá, o livro de poemas Babelical (2018).




Comentários

  1. Nossa!!! Impactada com a simplicidade em dizer o quão necessário é a presença do Ser nas relações. O cotidiano é um convite para o Ser no aqui e agora.

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  2. Devemos ficar atento as pessoas ao nosso lado.Ficamos tão juntos e não as percebemos e assim o tempo vai passando.

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  3. Belíssimo conto! Você é um conhecedor da alma feminina!

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