Viradinho a paulista nas ilhas do canal, de João Mattos


VIRADINHO A PAULISTA NAS ILHAS DO CANAL

Pra começo de conversa, ler mais um pouco sobre a vida de Victor Hugo. Depois de temperar estes bifinhos e adiantar a salada, procuro na enciclopédia. Imagino sua mulher, Adèle Foucher, dando instruções à nova cozinheira. Como preparar bem o coq au vin - o velho Hugo devia ser muito exigente. Coq au vin ou boeuf bourguignon? Coq au vin é mais apropriado para um marido narcisista como ele, a imagem de um galo velho cai bem para aquele sátiro sempre em busca de novas aventuras de alcova. Sim, filho, quiser é com S. Todas as formas do verbo querer são com S. E não enrola muito nesse dever, o ônibus pra escola não espera. Talvez ela se atrapalhasse um pouco no trato das filhas, Léopoldine pensando em frisar os cabelos, Adèle querendo um vestido de mousseline. Que confusão, a mãe se chama Adèle, a filha é Adèle também, como é que uma escritora pode lidar com isso? A diarista vem amanhã, vou ver se aproveito este solzinho fraco para secar os lençóis perto da janela, assim ela dá conta de passar. Não sei se situo a história antes ou depois do exílio em Guernsey. Gustavo, veste logo o uniforme, menino! Complicado ter um filho temporão, pensei que a esta altura da vida já estivesse livre desse tipo de cuidados. De outros cuidados uma mãe não se livra nunca. Foi certamente muito duro para ela quando Adèle, a filha, fugiu para ir atrás de seu amor, um amor que só existia na cabeça dela. Será que Fernanda melhorou de humor? Não sei se é uma briguinha com o namorado (apenas um ficante, ela me corrige), se é, mais uma vez, nota baixa em química. É capaz de não ser nem uma coisa nem outra, adolescente emburra por nada. Talvez eu pudesse criar uma cena com ela adolescente, quem sabe um flashback, que idade ela teria quando começou o namoro com o escritor? Não sei se Camilo chega cedo, agora tem sempre um jogo de tênis, uma cervejinha com amigos, um serão de trabalho. Acho que vou retratar Adèle nos tempos de Guernsey, aquele amante dela – como era o nome do escritor? – já ficou para trás, agora ela está totalmente ao lado de Victor Hugo em seu exílio nas Ilhas do Canal... Como foi a prova, Fernanda? Não vá se esquecer do dentista hoje. Mas ele é que não abandonava a amante, mesmo no exílio a tal Juliette estava lá, com casa montada às expensas dele. Esta pia está muito encardida, nunca me lembro do Veja Multiuso quando vou ao supermercado. Na minha história, Adèle estará ao lado do marido mas cheia de ódio por ele, vai ser bom explorar essa contradição. Não sei que diabo Camilo faz com suas camisas, estão sempre puídas no cotovelo. Deve ser mesmo terrível aguentar um marido tão famoso, minha Adèle vai sofrer muito. Não passa de hoje, temos de definir nossas férias em Búzios. Preciso dar um jeito no cabelo, pareço um Judas em sábado de Aleluia. Não, Fernanda, o almoço ainda não está pronto, venha me ajudar um pouco aqui. E depois ainda teve a outra filha, a que se afogou com o marido, essa história já é dramática em si, acho que posso explorar mais as tensões familiares, vai que Adèle estava brigada com a filha quando ela morreu, dá um bom conflito. Mas onde será que Gustavo enfiou o uniforme sujo de ontem, preciso dar uma ordem nesta gaveta. Telefonar pra minha mãe à noite, não posso me esquecer. E a França inteira endeusando o grande Hugo, e ela se irritando com as cuspidas do homem fora da escarradeira, com os atrasos para o almoço, com as visitas inesperadas. Venha, Fernanda, a comida vai esfriar! Talvez ela sonhe com o antigo amante, recorde os bons momentos. Telefone a essa hora, quem é o chato que liga justamente quando o almoço está pronto? Atende aí, Fernanda, o telefone está em cima da mesinha! Já não dou conta de arrumar esses jornais que Camilo espalha pela sala. Posso fazer com que ela odeie Guernsey, e sinta saudades de uma bela casa de chá parisiense, perto do Palais Royal ou da Rue Saint-Honoré. Vamos lá, lista da quitanda: escarola, bertalha, cebola e cheiro-verde. Batata não precisa não, ainda tem no cesto. Sainte-Beuve era o nome do amante, agora me lembro. Como é, Fernanda? Seu pai vem pra jantar com dois amigos, é isso? Meu Deus, mais essa agora. Vou ter que emendar quitanda e açougue, depois dizem que as mulheres gostam de bater pernas. O suprimento em Guernsey não devia ser muito fácil, encontrar aspargos e endívias para as exigências do paladar do marido genial era com certeza uma tarefa e tanto. Esta panela está cheia de cracas, uma boa areada mais tarde. O que será que passava por sua mente, quando o outono ia chegando ao fim e o vento do Canal da Mancha açoitava as árvores do jardim? Fernanda, estou indo agora; deixe a chave embaixo do capacho quando sair para o dentista. Será que faço umas costeletas de porco ao molho ferrugem? Depende do que encontrar no açougue. Nossa vizinha não se enxerga mesmo, de minissaia com essa idade. Acho que não vai dar para concorrer ao prêmio este ano. Mas do ano que vem não passa. Minha cara Adèle Foucher, que o inverno de Guernsey lhe seja suportável, fico eu aqui na minha vidinha. Mandioquinha ou inhame, preciso ver o que está melhor na quitanda.

(Conto vice campeão no encontro de 07/08/2018)

João Bastos de Mattos, nascido de Capivari-SP no inverno de 1952, é engenheiro eletrônico formado pelo ITA, mas tem dificuldades para trocar uma simples lâmpada. Trabalhou por mais de 30 anos na Petrobrás. É escritor diletante, tendo vencido por duas vezes o Concurso de Contos Petros.



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