Vida Sertaneja, de Cecília Mouta

A luz da lua sombreava, feito pintura, qualquer coisa que se atrevia a emergir naqueles vastos campos, agora negros, pela noite. A paisagem que se formava era quadro digno de memória. Dava dó de passar ali no meio e estragar a obra da natureza, mas a vida não é arte, e os compromissos não esperam.
            A barba por fazer coça o meu rosto feito urticária das “brabas”, mas não gosto de mim sem ela, então, só raspo quando vejo a loucura se aproximar em cima de boi “brabo”. E põe “brabo” nisso! Esses dias o Demônio danou a correr atrás de Jeremias, o rapaz que costumava me ajudar a botar o rebanho pra pastar nas terras mais distantes. Jeremias, que não é bobo nem nada, danou a correr também. Mas o pobre do rapaz foi ser filho de nordestino e puxou essa tal de genética das pernas curtas. Foi o tempo dos meus cílios se separarem para o chifre do Demônio perfurar sua pele maltratada. O berro de Jeremias era mais potente que berrante. O voo, mais alçado que de águia. Eu e mais dois ajudantes partimos pra cima da besta, pra poder evitar que tragédia maior acontecesse. As cordas dançaram no ar feito concurso de dança, até encontrarem aquele que lhes fugia. Para segurá-lo, foi força que deve ter brotado da terra, mas tudo se acalmou. Jeremias está de cama que é pra poder se recuperar do irrecuperável. A chifrada do Demônio é tatuagem na pele que tempo nenhum tem coragem de esconder. E o que fica na cabeça, ninguém tira.
            Mas essa barba maldita vou ter que tirar. Meus dedos já não repousam em outro lugar senão nela, num movimento ensaiado de passos: pra cima e pra baixo, debaixo pra cima. Em ritmo de arrocha.
            O amarelo do luar agora dá lugar a uma aquarela alaranjada. Parece até que o pintor da natureza derrubou o frasco de tinta no horizonte. E de lá se espalha pra cá. As sombras se escondem, tímidas, do sol que já vai sair. E com ele, saio eu. Ajeito o chapéu na cabeça e observo meus ajudantes lá no pasto abrirem a porteira. Aquela é do inferno, Demônio foi vendido e vai hoje embora. Jeremias disse amém! Assim que a manhã soprou o vento no meu rosto, soprei eu o berrante.

(Conto apresentado no encontro de 17/04/2018)

Cecília Mouta nasceu no interior do Estado do Rio de Janeiro, em 1993. É graduada em Publicidade e Propaganda pela Pontifícia Universidade Católica (PUC - Rio). Além de romances, ela também se dedica a escrever roteiros, poesias e a fazer composições. Apaixonada pela música, ela toca violão e estuda piano. É a autora de "O Colecionador de Borboletas", publicado pela Novo Século em 2012.




Comentários

  1. Encantada com a narração! A vida difícil, dura dos sertanejos contada com tanto lirismo! Me lembrou muito os nossos inesquecíveis Graciliano Ramos e José Lins do Rego. Autores imortalizados pelas suas obras. ❤❤❤

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