Matadouro 1704, de Guilherme Preger
“Humanista é uma
pessoa com grande interesse pelos seres humanos. Meu cachorro é humanista”
Kurt Vonnegut
“Derrama o leite
bom na minha cara/E o leite mau na cara dos caretas”
Caetano Veloso
“O diabo na rua, no
meio do redemunho”
Riobaldo Tatarana
Irmãos, as pragas
invadiram nossos pastos e adoecem a nossa grama e alfafa. Nasceram e se
multiplicaram as flores vermelhas que envenenam nossos bois. E com isso o
sangue de nosso gado se deteriora e o leite de nossas vacas adquire uma maligna
cor rubra. Do que adiantam as vacas se seu leite já não alimenta nossa prole? Sacrifiquemos
então, Irmãos, uma Vaca para que o deus santificado, cuja mão livre organiza os
passeios no pasto, possa interromper a PesTe que nos abate, como se fossemos
nós o gado.
Em nome do Pai, do
Filho e do Espírito Santo, digamos SIM ao sacrifício da Vaca!
SIM!
Em nome de minha
mulher, de meus filhos e da família reunida em volta da mesa para a santa ceia,
eu digo
SIM!
Em nome do meu tio Guimarães
que me levava quando criança ao estádio para torcer pelo nosso time do coração,
eu digo
SIM!
Por Campo Grande, a
joia morena de nosso Cerrado, eu digo
SIM!
Por Isabela, uma menina
linda que conheci na vereda da idade e a quem abri suas pernas, eu digo
SIM!
Pelo vaqueiro Hermógenes,
que era vegetariano, mas era o pavor das vacas, pois sabia como ninguém marcar
a carne do gado, eu digo
SIM!
Sim, Irmãos,
sacrifiquemos a Vaca Profana. Para iniciar o ritual, convocamos a este recinto,
nossa Irmã Pastora.
Entra
no recinto a Irmã Pastora. Ela porta uma máscara de cabeça de égua e um jaleco de
vaqueiro. Seus seios estão à mostra e ela está nua abaixo da cintura. Um rabo
de égua pende preso por um laço. Ela se ajoelha e fica na posição de quatro
apoios. O grande Irmão então se aproxima por sua frente.
Irmãos, saudemos nossa
Irmã Pastora. Ela é o receptáculo que multiplica nosso sêmen branco e sagrado e
faz jorrar de suas tetas leite puro e abundante. Preservamos nossa Irmã Pastora
de todo vício, de toda praga e todo veneno.
A
Irmã Pastora ordenha com as mãos o Grande Irmão até a ejeção de seu sêmen. Ela
recolhe seu líquido branco numa bacia. O Grande Irmão em seguida lhe fornece um
imenso facão. A Irmã Pastora se levanta, brande o facão e fala alto mostrando
todos os inúmeros dentes de sua cabeça equina.
Eguo-me ao nosso Pai
misericordioso para que tenhamos paz e para que possamos nos livrar das ervas
daninhas da prostituição. É a vaca puta que destrói nossos pastos e nossas
famílias, corrompe nossos maridos e filhos, seduz nossas filhas. Em nome do
sêmen puro do Senhor, eu digo
SIM!
A
Irmã Pastora se dirige ao curral atrás do recinto e de lá se ouvem guinchos
lancinantes. Ela retorna trazendo a bacia com o sangue da Vaca misturado ao
sêmen do Grande Irmão.
E aqui trago a prova do
sacrifício da Vaca. Estamos livres da PesTe, graças ao Senhor que é nosso
Pastor.
O
Grande Irmão, no entanto, pergunta preocupado
Mas Irmã Pastora, onde
deixaste o facão?
Nesse
momento, adentra o recinto uma portentosa criatura com corpo de mulher e cabeça
de vaca. Ela sangra entre as pernas. Uma das mãos segura o facão. Ela o agita
no ar...
E
no ínfimo momento antes do facão encostar seu gume na garganta do Grande Irmão,
é possível ouvir os últimos sons que saem de suas trêmulas cordas vocais:
NÃOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOO!
(conto apresentado no encontro de 17/04)
Guilherme Preger é #LulaLivre
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