Por um bife, de Jack London

Ele era um veterano e o mundo não se dava bem com veteranos. Ele não era bom para nada, a não ser parar biscates, e o nariz quebrado e a orelha inchada não lhe ajudavam nem para isso. Ele se viu desejando que tivesse aprendido algum ofício. Teria sido melhor a longo prazo. Mas ninguém havia lhe dito isso, e ele sabia, bem no fundo do coração, que não teria ouvido se o tivessem.  Tinho sido tão fácil. Dinheiro de sobra, lutas intensas e gloriosas, períodos de descanso e vagabundagem entre elas, um séquito de ávidos puxa-sacos, os tapas nas costas, os cumprimentos, os figurões contentes em lhe pagar um drinque pelo privilégio de uma conversa de cinco minutos, e a glória da luta, os ginásios gritando, o turbilhão dos golpes finais, os juízes “King é o vencedor!” e o seu nome nas colunas de esporte no dia seguinte.
            Aqueles tinham sido dias e tanto! Mas ele se dava conta agora, do seu jeito lento e reflexivo, que eram os veteranos que ele estava derrubando. Ele era a Juventude, ascendendo; e eles era a Idade, afundando. Não espantava que tivesse sido fácil – eles com suas veias inchadas e as juntas dos dedos batidas e cansadas até os ossos das longas batalhas que já tinham lutado. Lembrou do dia em que derrubou o velho Stowsher Bill, em Rush Cutters Bay, no décimo oitavo round, e como o velho Bill chorara como um bebê depois no vestiário. Talvez o aluguel do velho Bill estivesse atrasado. Talvez ele tivesse uma mulher e duas crianças em casa. E talvez Bill, naquele dia da luta mesmo, estivesse faminto por um bife. Bill tinha jogado o jogo e levado um castigo incrível. Ele podia ver agora, após ele mesmo ter passado por duras experiências, que Stowsher Bill lutara por um prêmio maior naquela noite há vinte anos do que o jovem Tom King, que lutara pela glória e o dinheiro fácil. Não bra, tinha um número espanta que Stowsher Bill tivesse chorado depois no vestiário.

Bem, um homem tinha somente um determinado número de lutas em si, para começo de conversa. Era a lei pétrea do jogo. Um homem poderia ter cem lutas duras nele, outro homem só vinte; cada um, de acordo com sua constituição e a qualidade da sua fibra, tinha um número definido, e, quando ele as lutara, estava acabado. Sim, ele tivera mais lutas nele do que a maioria dos lutadores, e tivera mais do que a sua cota de lutas duras, extenuantes – do tipo que exigiam do coração e dos pulmões até estourarem, que tiravam a elasticidade das artérias e faziam nós duros de músculo da flexibilidade macia da Juventude, que esgotavam os nervos e o vigor e deixavam o cérebro e os ossos cansados do excesso de esforço e esgotamento da resistência. Sim, ele tinha se saído melhor do que todos eles. Não sobrara nenhum dos seus velhos parceiros de luta. Ele era o último da velha guarda. Ele tinha visto todos terminarem, e dera uma mão no fim de algum deles. Eles colocaram ele contra os veteranos, e um depois do outro ele derrubou – rido quando, como o velho Stowsher Bill, eles choraram no vestiário. E agora ele era um veterano, e eles colocavam os jovens contra ele. Havia esse garoto, Sandel. Ele viera da Nova Zelândia com um histórico a legitimá-lo. Mas ninguém na Austrália sabia nada a respeito dele, então eles o colocaram contra o velho Tom King. Se Sandel fizesse uma boa apresentação, ele teria a oportunidade de lutar contra homens melhores, com bolsas maiores para vencer; então isso dependia dele proporcionar uma batalha feroz. Ele tinha tudo a ganhar com isso – dinheiro, glória e uma carreira; e Tom King era o velho tronco grisalho que guardava a estrada para a fama e a fortuna. E ele não tinha nada a ganhar, a não ser trinta libras, para pagar o senhorio e os comerciantes. E, refletindo sobre isso, Tom King percebeu em sua visão impassível a forma da Juventude gloriosa, erguendo-se exultante e invencível, com músculos flexíveis e pele macia, com um coração e pulmões que nunca foram exaustos e desgastados e que riam da limitação de esforço. Sim, a Juventude era a Nêmesis. Ele destruía os veteranos e não dava importância, e ao fazer isso ela destruía a si mesma. Ela alargava suas artérias e machucava as juntas dos dedos, e por sua vez era destruída pela Juventude. Pois a Juventude era sempre jovem. Era apenas a Idade que envelhecia.

(tradução de Jorge Ritter)


Bibliografia: Nascido em 1876, em São Francisco, Jack London (pseudônimo de John Griffith Chaney) teve uma infância pobre. Foi obrigado a abandonar os estudos na adolescência para trabalhar e aos catorze anos já cumpria jornadas de mais de dez horas diárias em fábricas. Aos dezoito, cansado da exploração, resolve percorrer seu país de trem, clandestinamente. Na volta da viagem, decide tornar-se escritor. Em 1900 publica o primeiro de uma série de livros, sempre com êxito de público. Mantém o hábito de viajar, trabalhando inclusive como correspondente de guerra. Enfrentando graves problemas de saúde, morre aos quarenta anos, por overdose de medicamentos. Obras: Produziu diversos romances e coletâneas de contos, entre os romances, destacam-se “O Grito da Selva”, “Antes de Adão”, “Caninos Brancos” e “O Lobo do Mar”. “Por um bife” é uma coletânea de contos especial só com histórias de boxeadores. 

(Mote lido por José Fontenelle para o encontro de 27 de junho de 2017)

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