João da Rua, por Guilherme Preger

Minha vida era boa, até o dia em que veio o Golpe. E com o Golpe, veio minha demissão. E com a demissão eu fui para a rua. Por isso decidi me recolher a um canto na rua Paulo Barreto em Botafogo, onde morava anteriormente, vivendo de aluguel num apartamento de quitinete. Decidi levar comigo um saco com apenas duas mudas de roupa e mais uma mala repleta de livros. Decidi me estabelecer justamente na calçada junto ao muro que delimitava a garagem de meu antigo prédio, abaixo de uma marquise que me protegia da chuva. O espaço era aconchegante, razoavelmente limpo e tinha mais ou menos a dimensão de metade de meu apartamento anterior. Achei que seria um lugar apropriado, pois sempre fui amigo do porteiro, seu Pereira, e do servente, o Gerson, trabalhadores desse meu antigo prédio, bem como do Alcides, que era uma espécie de “faz-tudo” do condomínio, tendo trabalhado em minha casa várias vezes. Em minha vida de bonança, de trabalhador de carteira assinada, sempre fui generoso e os ajudava quando eventualmente me pediam algum auxílio. No natal, a caixinha era gorda.
Contei com a compreensão de meus amigos trabalhadores que após um inicial estranhamento continuaram a conversar comigo sobre futebol e política. Antes de ser despejado de meu ex-apartamento distribuí quase todos meus pertences domésticos entre eles, mudas de roupas, objetos de decoração, quadros, utensílios domésticos e eletrodomésticos, eletrônicos, etc.  Quem não gostou muito foi a síndica, que anteriormente me tratava de Dr. João. Agora ela sempre entrava no prédio sem me cumprimentar. Meus ex-vizinhos que me davam bom dia, boa tarde e boa noite no elevador, também não me dirigiam mais a palavra. Quando entravam de carro na garagem, que era ao lado de minha cama de papelão, fingiam não ter me visto.
Meu amigo Pereira, o porteiro, me confidenciou, em nome de nossa amizade, que a síndica exigiu que ele jogasse a água da mangueira do jardim na calçada onde estavam minhas coisas, para acabar “com aquela porqueira”. Por isso, combinei com o Pereira que todo dia de manhã eu daria uma volta com minhas coisas para que ele pudesse lavar a calçada. Achei que seria uma boa ideia, pois era uma maneira de manter meu espaço mais asseado. Então, eu dava uma volta no quarteirão, pedindo algumas esmolas para o café. Às vezes, costumava dar uma passada no cemitério que ficava por perto, na rua São João Batista. O cemitério era o lugar onde eu mais gostava de passear e onde sentia uma paz absoluta. Quando podia, acompanhava os enterros e apresentava minhas condolências às famílias em luto.
Então, retornava após o almoço, abria minha mala que servia então de uma pequena banca de livros improvisada. Minha biblioteca era boa, portanto consegui vender rapidamente vários livros. Pereira e Gerson também me traziam outros livros que encontravam na vizinhança. Alcides montou uma mesinha de madeira feita com caixotes de frutas do supermercado. Meus clientes me ofereciam livros por consignação. Pessoas da vizinhança também me ajudavam com marmitas que me entregavam discretamente. E minha banca então foi crescendo. Trabalhava só na parte da tarde, depois dava mais um passeio na direção da praia e me dava ao luxo de tomar um café num botequim. Descobri, por meio de um padre que me comprou um livro, que na Igreja da Matriz poderia tomar banho, no banheiro dos fundos. À noite, afinal, regressava ao meu dormitório, abaixo da velha marquise.  

Eu tinha um afeto por aquela região, por aquela rua e por aquele prédio. Ali estava perto de meus amigos que poderiam me ajudar em caso de um súbito mal-estar. No natal, eles me deram presentes: uma garrafa térmica, um cobertor e uma edição antiga, de capa dura, de Os Bruzundangas, de Lima Barreto que o Alcides encontrou abandonado num apartamento após uma mudança. Resolvi que não iria vender essa edição e passei a levá-la no bolso do sobretudo para ler calmamente em algum banco de praça ou no cemitério .  Com a venda de livros e com as economias guardadas da minha demissão, calculo que posso ficar nessa vida por mais uns três ou quatro anos, talvez mais. Esse Golpe será demorado, é o que dizem.  


(Conto vencedor do encontro do dia 13/06/2017, comemoração dos 10 anos do Clube da Leitura)


Guilherme Preger, escritor de esquerda, carioca e capoeirista,  é um dos fundadores do Clube da Leitura, autor de Capoeiragem (7Letras/2003) e Extrema Lírica (Oito e Meio/2014).    

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