Conversa, por Gabriel Cerqueira
Fevereiro de 1902, em São José do Barreiro - São
Paulo
Felipe
Azevedo andava de um lado para o outro na cozinha do casarão da Fazenda Santo
Eustáquio. Ele esperava por Carlos Fagundes, um conhecido de infância a quem
iria propor a venda da Fazenda São Francisco. Já tinha em mente tudo o que iria
dizer e como agir, e estava confiante mesmo diante do desafio que estava por
vir. Sentou em uma das cadeiras postas a uma longa mesa de mogno e bebeu um
pouco do café que Dona Maria havia passado. Um burburinho se iniciou fora do
casarão seguido. Fagundes entrou na cozinha. O rosto jovem, a pele bronzeada,
bigode e barba finos, o cabelo ondulado e o corpo esbelto; parecia mais um peão
bem cuidado que senhor de fazenda. Colocou o chapéu em cima da mesa e sentou-se
em uma das cadeiras.
Fagundes
não era uma pessoa fácil de lidar, isso Felipe sabia desde criança. Homem de
poucas palavras e senso forte, o arquétipo de homem mal-encarado envolveu
Carlos e a simples pronúncia de seu sobrenome, alcunha pela qual era mais
conhecido, era recebida com receio por qualquer pessoa da região. Formado em
Direito pela Universidade de Coimbra, viu-se obrigado a se afastar da advocacia
após a morte do pai em 1897 para administrar os bens que herdara.
Felipe
foi direto ao ponto - prolixo era uma das últimas coisas que Fagundes
aparentava ser – e logo começou a falar sobre as dimensões da Fazenda São
Francisco, de quão boa a qualidade da terra era, ideal para o plantio de café e
das cabeças de gado que poderia angariar se aceitasse a oferta logo. Fagundes
disse apenas:
- E o senhor seu pai concorda com isso?
Parecia
que tudo que Fagundes dizia era friamente calculado. Felipe tinha a fama de bon vivant sustentado pelo pai. Felipe
não se abalou.
- Senhor Antônio está muito doente. O médico disse que não dura duas
semanas. Como não levo tino para os negócios de fazenda ele mandou que eu
vendesse a São Francisco.
- Não sabia que Antônio estava tão mal assim. E por que você não espera a
herança? Pode deixar a cargo do advogado do senhor seu pai, que Deus ainda
terá, a venda das posses. E Pedro, que houve com ele?
- Por que a parentada está atenta feito urubu
sobrevoando carniça. A todo momento chega gente que não vejo há mais de anos e
agem como se almoçassem lá na fazenda todo domingo depois da missa. Pedro anda
enfiado na Fazenda Aurora, em Barbacena - sentiu vergonha ao falar do único
irmão que tinha, pois era o oposto dele e orgulho do pai, mas não deixou
transparecer.
Maria Amália, esposa de Fagundes, entrou na
cozinha pela porta que dava para fora do casarão. Não disse palavra. Se
aproximou de Fagundes e tocou sua mão, e ele lhe devolveu o gesto. Era uma
Gouveia e haviam se conhecido em Braga. O populacho de São José do Barreiro
costumava dizer que Fagundes e Maria Amália eram duas faces da mesma
assombração. Ela também compartilhava o ar sério do marido, não gostava de
conversa mole, nem das reuniões de senhoras na cidade; gostava da roça, do sol
batendo na face, de fruta colhida do pé. Caçava de espingarda na mão montada em
seu cavalo. Sua pele também era bronzeada e os longos cabelos castanhos estavam
presos em trança. A aura de mulher forte a envolvia, algo que ao mesmo tempo
atraía os homens e os amedrontava. Para manter seus status de poder eles
preferiam mulheres que costurassem buracos nas camisas em vez delas mesmas
fazê-los.
Pessoa de alma pequena, Felipe pensava mais com
a cabeça de baixo que com a de cima e demorou seu olhar mais tempo do que devia
em Maria Amália. Fagundes sacou uma faca que estava em sua bota e a fincou na
mesa. Enquanto os dois homens se encaravam - um parecendo uma cobra prestes a
dar o bote, o outro a presa covarde que suava frio -, Maria Amália despejou um
pouco de água num copo de barro; o som do líquido preencheu a cena fatal. Ela
bebeu tranquilamente e se retirou do aposento.
- Sem o homem a faca não nem existe. O metal
habita as entranhas da terra e o cabo ou é árvore ou sustenta um animal. É o
homem quem decide qual o nome do objeto e o que fazer com ele, como cortar a
comida ou arrancar couro... Que tipo de homem eu sou?
Uma resposta que poderia ser considerada um ato
de suicídio surgiu à boca de Felipe, que a falou sem pensar:
A sorte era que Fagundes não tinha o ego elevado
e gostava da sinceridade contida nas respostas atrevidas.
- Visitarei seu Antônio nesta semana - Fagundes
continuou com seu mistério; ao não dizer data certa poderia chegar a qualquer
instante, o que atrapalhava qualquer situação que poderia ser ensaiada por
Felipe. - É uma vergonha que ainda não tenha visitado um amigo de grande estima
para mim e meu pai. Já está na hora de você ir.
E Felipe saiu contrariado, com o gosto amargo da
derrota na boca. O que havia imaginado não se cumprira, pelo contrário,
tornara-se pior. Agora precisava arranjar algum jeito de matar o pai ou piorar
sua saúde antes que Fagundes soubesse que Antônio Azevedo estava apenas com um
resfriado.
(Conto lido no encontro de 30/05/2017)
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