O Apocalipse dos Trabalhadores, de valter hugo mãe

o corpo do senhor ferreira já havia seguido para a morgue, e já havia sido limpa a rua do seu sangue para não continuar chocando os vizinhos. logo mais estariam as crianças passando para as escolas e era mesmo a tempo de se pôr tudo como se nada tivesse sido, para não assustar os pequenos e pacificar o povo de bragança. a maria da graça sentou-se na sala, colocou as mãos no colo sem lhes ter o que fazer. o portugal permaneceu ainda quieto, a cabeça entre as patas e o olhar como cabisbaixo. ela esperou uns minutos até que tivessem tempo para conversas. não percebeu o olhar em redor da agente quental. não percebeu imediatamente quem seria a agente quental. estavam duas mulheres no lugar, nenhuma lhe dissera palavra. quem lhe falasse, julgava,começaria por lamentar a perda. pensava que estariam ali para reconhecer o seu direito à viuvez daquele homem. bateu a mão numa perna e foi como o cão correu e se lhe enrolou no colo. ela ficou com as mãos penteando-lhe o pelo. a agente quental perguntou, era a senhora quem limpava também o compartimento que fica por baixo desta sala. a maria da graça assustou-se, reconheceu-lhe a voz, achou-a feia e má, gaguejou e respondeu, bom dia.

(mote vencedor para o encontro de 11/07 lido por Lilian Laranja)

publicado por São Paulo, Cosac Naif, 2013

'O apocalipse dos trabalhadores' conta a história de Maria da Graça e Quitéria, duas empregadas domésticas (ou 'mulheres-a-dia', como são chamadas em Portugal) que, apesar do trabalho duro e da rotina opressiva, mantêm as esperanças em uma vida melhor. O livro narra suas desventuras amorosas - Maria da Graça envolve-se com seu patrão, que considera o homem ideal; Quitéria, por sua vez, vive um romance com um jovem imigrante ucraniano. Para incrementar o orçamento mensal, as duas fazem bicos como carpideiras, e passam madrugadas velando defuntos desconhecidos. Essa experiência entre mortos e a proximidade da finitude fazem com que tenham uma relação particular com a fé e a religião.



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