A Velha, por Claudio PS

A Velha

Na mesa respingada de vinho barato ela escrevia suas memórias antes de morrer. Por que todo mundo vai morrer um dia, ela dizia. Quem sabe assim ela exorcizava seus demônios?
Ela se casou uma vez, o marido não era mau ou ausente, mas no sentido “bíblico” pouco presente. Dizia ter necessidade. Mais do que simplesmente vontade. Transar, trepar, foder, fazer sexo. Escolha o termo que lhe seja mais agradável.
Dizia que quando lhe doíam as pontas dos dedos sabia estar grávida. E abortava. E abortou dezenas de vezes. Não havia anticoncepcional. Ele surgiu nos anos sessenta. As clínicas tratavam muito bem. Eu suponho.
E a necessidade fez com que trepasse mais de quinhentas vezes, e abortasse umas dez.
Condenem-me, ela dizia, se puderem largar as pedras de suas mãos. Não sejam hipócritas. Reconheçam que foram iguais ou piores do que os adolescentes de American Pie. Ou gostariam de ter sido. Não, não exagere, você vai dizer. Aquilo é filme. Mas, bem, ninguém é santo.
Voltando às memórias lembrou que transou ou trepou ou fez sexo umas setecentas vezes. Mas você disse quinhentas. Desculpe, ela corrigiu e não me lembrei de corrigir antes. Talvez para mostrar que às vezes esquecemos que somos humanos.
Por que a memória trai. Nos faz lembrar mais do que queríamos esquecer, do que gostaríamos de lembrar.
Para lembrar de coisas boas usávamos diários. Descarregar as lembranças que incomodam.
Muito antes de começar a escrever suas memórias, ela contava seu passado. Minha mãe na cozinha, e eu e ela nas poltronas da sala. Suas desavenças. Amores e desilusões. De como achou engraçado dois cães machos fazendo sexo oral um no outro numa chácara em Petrópolis. Meu irmão ficou horrorizado. Afinal, eram as crianças ouvindo barbaridades de uma velha.
“Sexo faz parte da vida, e muitos humanos são parecidos com os cães”, dizia ela. Eu devia ter uns onze, doze anos. Sou mais velho que meu irmão dois anos. Ele não sabia dessas coisas. Eu já sabia.
Houve dias que ela era muito chata. Repetia histórias. Reclamava da vida. Da vizinha também velha e fofoqueira. “Mas esta que não para de falar também é fofoqueira...”, eu pensava.
Muitos anos atrás ela me deixou o manuscrito. Num caderno de capa dura.
Na dedicatória ela dizia: “Me casei, me separei, tive uma filha, cuido de um neto. Nunca abandone sua mãe, por mais despudorada ou louca ela seja”.
Como a minha família não tinha contato com familiares dela, eu não soube quando ela morreu.
Em uma das mudanças que fiz perdi o manuscrito. Fiquei triste, mas, paciência. As pessoas são como são. Qualidades e defeitos. Vicissitudes e hábitos, alguns saudáveis, outros doentios. Alguém pode ter se apoderado dele, também. Duas perdas.
Um dia sonhei ter morrido.
Na recepção uma moça vestida de vermelho, com olhos estranhamente brilhantes me avisava: “A velha está aqui há um tempão te esperando. Mas passe na triagem primeiro.”
Claudio PS
(Conto escrito para o encontro do dia 07/02/2017)

Acreditou que sabia escrever bem depois de tirar 10 em redação aos 14 anos. Deu no que deu. Informata, enxadrista e pessoa que escreve.




Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Vamos comprar um poeta, por Afonso Cruz

Homens não choram

Cultura: uma visão antropológica, de Sidney W. Mintz