Mote do encontro (04/10/ 16)
Mote lido por
Daniel Russell Ribas
Um dia toparei comigo
O telefone tocou às sete da manhã e eu cambaleava do
sono que não dormi. Confesso que fiquei satisfeita: a coordenadora da clínica
queria me tranquilizar. A tranquilidade significava meu pai converso em vegetal
sobre a cama, oxigênio a mil, dedos a necrosar, tosto de cera adivinhando o
próximo habitat. Ora desperto, ora adormecido. Sim, a intermitência das coisas
brutas e serenas retornara em grau máximo.
Novamente os vivos e os mortos povoavam seu quarto. Ele
indicava um ponto na parede e lá residia a escola da infância, onde parentes
preparavam seu desenlace. Esta era sua. Desenlace. Mas não era a única palavra
a nos vexar. Havia todo um vocabulário misto de invenção e memória, o qual penávamos
para decifrar: “hecatombe” não era problema, apenas reflexo de nossa pobreza de
linguagem, mas “sorvete de gliche” gerava angústia, pois não havia mais pulmão
para nos esclarecer. Aguardávamos entre uma respiração e outra, a busca calma
de alguém que sempre soube dominar: uma golfada, o breve armazenamento do ar, o
tempo de recuperação do cérebro para organizar ideias e conter o fôlego que lhe
resta, e tudo precisava ser rápido, pois em segundos a máquina-homem necessitaria
novamente de outra golfada e mais outra, e nesse intervalo mínimo teria de
encontrar as palavras certas para explicar o que talvez fosse demasiado
simples, sorvete de gliche é assim: gliche, morango e gliche.
Era nítido. A melhora passara e, desse momento em
diante, restou a agonia da espera. A espera daquilo que aguardávamos há meses.
A enfermeira, ao telefone, repetiu a missa, com a
constância de quem mantém uma clínica de viver e morrer idosos: pode ser hoje
ou amanhã, ou quarta-feira o mais tardar.
Saí de casa imediatamente, atabalhoada, corri o mais
que pude para tomar sua mão e dizer-lhe, se ainda era tempo, não eu não estava
segura de nada, muito menos de ter jogado o remédio contra câncer no lixo, de
ter gritado àquele médico bufão que eu bancaria a eutanásia de meu pai.
Foi ele, o médico, quem disse essa palavra pela
primeira vez. Eutanásia. Eu sabia o que significava. E não era aquilo. Não era
bem aquilo. Mas quem conhece o significado das palavras todas?
FÁBRIO, Paula. Um
dia toparei comigo. Rio de Janeiro: Editora Foz, 1ª edição, 2015.
Paula Fábrio nasceu em 1970. É mestre e doutoranda
em Literatura pela Universidade de São Paulo. Desnorteio [Ed. Patuá], seu
primeiro romance, foi Vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura 2013, na
categoria estreante. Seu novo livro, Um dia toparei comigo (Foz), é finalista
do Prêmio São Paulo de Literatura 2016 e recebeu a bolsa de criação ProAC -
Programa de Ação Cultural da Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo.
que beleza!! deu vontade até de fazer... uma eutanásia, por que não? rsrs - eutônessa: bom conto!
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