Anatomia do Paraíso, de Beatriz Bracher


Passa no Supermercado, pega o que dá para pagar e entra na fila. Quando se aproxima do caixa, uma moça tenta entrar na sua frente, ela não deixa, a moça diz que já estava lá naquele lugar antes. Vanda diz que não, a moça insiste que sim. A situação é tão absurda que Vanda fica mais espantada do que braba; pensava em outras coisas, inclusive se não deveria voltar às gôndolas e trocar alguns produtos que escolhera por comida mais saudável, por causa do bebê, quando a moça tímida apareceu dizendo que aquele lugar era seu. Primeiro Vanda reage com sua habitual prontidão para defender o que lhe pertence, mas então atina para o inusitado da situação e olha em volta para tentar entender se deixou escapar alguma informação. O homem à sua frente se vira para ela:
Não quero me meter, mas é você que está certa, você estava atrás de mim.
Vanda não sabe por quê, mas não gosta da maneira como ele toma partido. Outras pessoas se manifestam, porém, nitidamente reprovam a atitude da moça que parece ser do interior e mais pobre do que os pobres dali. Vanda está cansada, mora no Rio de janeiro, muito esperto quer passar na frente, sair sem pagar, cobrar o dobro do que vale. Ela trabalhou o dia inteiro, não tem dinheiro, só quer entrar na fila, esperar sua vez, pagar e ir para casa, e vem a mulher, furar a fila na sua frente. Mas a mulher, ainda que tremendo de vergonha, não arreda o pé:
Eu estava aqui, este é meu lugar.
Vanda tem certeza de que a mulher não estava ali, que não é maluca e fala a verdade. Alguns clientes se constrangem e evitam olhar para a cena. Outros se comprazem com o mal-estar, principalmente da moça, que está no seu limite, quase a ponto de chorar, talvez. Vanda pede a ela com um olhar honesto que diga alguma coisa.
Eu não queria ficar atrás dele, por isso saí da fila...
Mas fiquei aqui ao lado. Tava esperando a fila chegar perto do caixa para entrar de novo e pagar.

Ela fala quase sem voz, olhando rápido para o homem na frente de Vanda. Ela intui o que aconteceu e ceder o lugar à moça que entra na frente não agradece, fica de cabeça baixa, atazanada pelo vexame. Vanda tenta se lembrar se a moça tímida realmente esteve o tempo todo ao lado, acompanhando o movimento da fila, esperando se colocar em seu lugar apenas na última hora. Não vai se lembrar, está distraída. Mas imagina que sim. O que o homem terá feito? Se a mulher estivesse na frente dele, ele poderia ter se encostado nela, se esfregado, mas como isso teria acontecido com ela estando atrás dele? Quem sabe uma parada brusca de marcha ré sútil. Ou talvez ela estivesse na frente dele, mas não tenha querido entrar de novo ali, por isso escolheu ficar logo atrás e entrar na fila na última hora. E o filho da puta do homem foi o único a se manifestar, a falar em voz alta contra mulher. Mais um. Que inferno! Mais um”.

Editora 34, 2015

(Mote para o dia 20/10/2016 lido por Fernando Andrade)


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Vamos comprar um poeta, por Afonso Cruz

Homens não choram

Cultura: uma visão antropológica, de Sidney W. Mintz