O desaparecimento de Beto - Patrícia Santana
O
desaparecimento de Beto
Era uma tarde de 1977 quando Beto conseguiu ver
claramente o que devia fazer. Parecia que alguma divindade tinha sentido pena
do seu sofrimento e decidido mostrar-lhe a saída, o caminho a ser trilhado, os
passos a serem dados, de forma tão detalhada quanto num manual de instruções.
Ele estava no jardim de casa, vendo o seu filho de sete
anos brincar e fingir inocência e ternura. Beto não conseguia entender como
todo mundo amava incondicionalmente os filhos. Ele não suportava o seu!!!
Aliás, Beto não suportava ninguém, desde sempre. Vivia numa estado mental de
indignação constante. Na escola ficava revoltado com a petulância da professora
que se achava a fonte de todo o saber, com o comportamento demasiadamente infantil
dos seus coleguinhas de oito anos e com a feminilidade exacerbada das
coleguinhas que criavam histórias sem originalidade ou plausibilidade com suas
bonecas mal vestidas.
A indignação com tudo e com todos perdurou, e a sua
adolescência foi um purgatório que não o levou ao reino dos céus, mas sim ao
inferno da vida adulta. A sociedade o incomodava. As pessoas demoravam demais
nas filas ou então eram obstáculos lentos nas calçadas. Seus colegas de
trabalho eram preguiçosos, os seus amigos eram vagabundos que se entregavam à
boemia com a consciência inexplicavelmente limpa, as mulheres a sua volta eram
fáceis demais ou então puritanas demais. No carnaval, ele conseguia ver a
devassidão repugnante das pessoas, assim como o natal mostrava nitidamente a
hipocrisia da humanidade. O ser humano, enfim, não prestava.
A única pessoa que nunca o irritou, e por quem ele
tinha profunda admiração, era a senhora sua mãe, uma santa mulher extremamente
católica que rezava o terço todos os dias e que se tornou viúva aos vinte e
dois anos, tendo de criar os filhos sozinha. Por isto, quando a sua mãe quis
que ele se casasse com a insuportável Larissa, ele aceitou a sentença apesar de
não ter cometido nenhum crime, somente para não decepcionar o único ser que ele
admirava.
Larissa... Mulher pior não havia!!! Falava baixo
para irritá-lo. Gestos lerdos, sem determinação... Ela tinha prazer em agir
como se fosse uma doente incapaz. Era limpa demais, submissa demais, frígida
demais. Beto não tinha medo de ir para o inferno porque sabia que nada no
universo podia ser pior do que aquilo.
O filho que saiu de suas entranhas fez jus ao horror
que era a mãe. Garoto mimado, malicioso, que desde a tenra idade se utilizava
do choro desesperado ou do sorriso esperançoso como uma arma para conseguir os seus
desejos e submeter os adultos a sua dominação. Aquilo ali era um ser frio e
calculista desde os três anos que fingia ser inocente, no entanto ninguém
percebia as artimanhas do guri, só o pai.
Mas o Beto tratava a esposa frígida e de gestos
lerdos e o garoto manipulador muito bem, porque a sua mãe sofreria muito se ele
agisse de outra forma. E ele não podia decepcioná-la.
A sua indignação com o mundo deu uma leve pausa com
o golpe de 1964. Achou aquilo bem-feito. Alguém tinha de botar ordem na
vagabundagem que tinha virado o Brasil. Não sabia se era a herança dos
escravos, mas o fato era que os brasileiros só entendiam a lei do chicote. A
democracia, quando concedida ao povo errado, era um meio cujo fim,
inevitavelmente, era a bagunça generalizada.
Entretanto, a senhora sua mãe ficou horrorizada com
o golpe militar. Ela passou a ir a encontros para rezar pelos perseguidos da
ditadura, a ler livros de uma tal teologia da libertação, a criticar
abertamente os militares no almoço de domingo. A insuportável Larissa
concordava com a sogra, sempre balançando a cabeça para cima e para baixo como
uma doente incapaz.
Pois bem, naquela tarde de domingo de 1977 alguma
divindade teve pena de Beto e mostrou-lhe a saída para seus problemas, passo a
passo.
Beto começou a frequentar bares e reuniões de
esquerda. Conseguia cópias do “Voz Operária” e do “Venceremos” e discutia as
ideias veiculadas nestes jornais no almoço de domingo. A sua mãe e a lerda da
Larissa estranharam o seu novo comportamento, porque, embora o Beto nunca
tivesse defendido abertamente a ditadura militar para não contrariar a sua
genitora, também não conseguia evitar demonstrar uma certa inquietude quando
falavam bem dos “esquerdistas”.
A mãe de Beto pensou que o espírito santo havia
iluminado o filho e lhe mostrado o caminho correto. Beto mudou da água para o
vinho, e a sua mãe estava orgulhosa e agradecida pelo milagre.
Beto, por sua vez, estava enlouquecendo. A companhia
dos esquerdistas era pior do que a companhia de Larissa e da criança
manipuladora. Eles não tomavam banho, bebiam, não tinham fundamentação teórica
para as suas opiniões, eram irracionais, falavam alto como se estivessem todos
numa colônia de deficientes auditivos... Enfim, aquilo era o ápice do
martírio!!!
Mas Beto, como um mártir, aguentou aquele sofrimento
sem fim, convivendo com aqueles seres abomináveis. Usava as odiosas calças
pantalonas, ouvia a música pretensiosa da Tropicália, tornou-se um expert na literatura de esquerda,
xingava os “milicos”, deixou os caracóis se formarem nos cabelos grandes. O sucesso
da peça de teatro que estava encenando vinte e quatro horas por dia foi tanto
que até o deixavam liderar reuniões, perguntavam a sua opinião sobre os mais
variados assuntos, apresentavam-no a pessoas importantes do movimento de
insurgência.
A encenação durou cerca de um ano até que, enfim,
chegou o grande dia.
Beto disse que ia à reunião de quinta-feira na
fazendo do Gregório para discutir com o grupo o protesto que seria realizado no
sábado. Mas Beto nunca chegou à fazenda. A sua mãe ligou para o Gregório e o
Gregório ligou para os outros tantos amigos que o Beto tinha feito, mas ninguém
sabia onde ele se encontrava. Larissa ficou arrasada, chorando o dia inteiro
jogada no sofá, com os gestos ainda mais lerdos que o normal. A mãe do Beto
rezava constantemente, os amigos questionavam os órgãos oficiais, os cartazes
na rua com os dizeres “queremos o Beto de volta” se multiplicaram. Mas as
semanas se passaram, assim como os meses, e o Beto não apareceu. Era, enfim,
mais um desaparecido político.
A mãe do Beto colocou fotos do filho por toda a casa
e o endeusou pelo resto da vida. Estava triste pela sua morte, mas orgulhosa do
seu fim heroico. Tinha dado a luz a um revolucionário, um militante, um
desaparecido político. Larissa nunca mais se casou e teve grande prazer em
adotar a personagem da viúva da ditadura, dando-lhe um ar de grandiosidade e
resignação das heroínas dos romances que leu na adolescência. O filho
maquiavélico e manipulador sofreu muito com o assassinato do amoroso pai,
perdendo a sanidade e tornando-se freguês habitual dos diversos manicômios do
Brasil.
Beto realizou o seu grande sonho: ir para Paris.
Sempre imaginou como os parisienses seriam um povo evoluído, culto, que respeitava
filas, que não se entregava à devassidão do carnaval e sem a hipocrisia
natalina do terceiro mundo. Ele tinha juntado dinheiro suficiente no seu
trabalho insuportável e falava francês com certa fluência, de forma que imaginou
que a transição seria suave e agradável. Ademais, sua santa mãe o idolatraria
para o resto da vida, e isto o deixava feliz.
No entanto, para a sua surpresa, chegando à cidade
da luz, descobriu que os parisienses eram um raça detestável. Metidos, educados
em demasia, sem espontaneidade, frios demais, calados demais, desconfiados
demais, reservados demais...
Conto escrito para o encontro de 10/03/15
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