A parte real e a parte imaginária - Francisco Ohana
A parte real e a parte imaginária
Ao
contrário do que muitos pensam, a matemática pura não é o país da solidão. Ela
é um conjunto de ilhas entre as quais é preciso navegar. Mas, para navegar, são
necessários instrumentos, tanto físicos – bússola, astrolábio, mastros – quanto
psicológicos – capacidade de improvisação, inteligência e resistência ao
isolamento.
Foi
isso o que disse o professor no primeiro dia de aula. Era maranhense, de baixa
estatura, franzino e arredio. Distribuía folhas que ele mesmo digitava,
contendo exercícios sobre números complexos, geometria analítica e
trigonometria, movendo-se rapidamente entre as carteiras dos alunos e dizendo
uma ou outra palavra introdutória sobre a matéria com sua voz anasalada e forte
sotaque nordestino.
No
fim da manhã, foi abordado por um aluno com dúvidas na matéria, que acabaram
por se revelar dificuldades de base. Agendaram um encontro naquela tarde para
dirimir as dúvidas.
As
aulas de reforço particular estenderam-se até a semana provas finais. Enquanto o
garoto caminhava de volta pra casa com seu walkman tocando I am a rock, de Simon & Garfunkel, o professor corria
desesperado para o consultório da analista, que o confundia com diagramas
lacanianos que não pareciam comunicar-se entre sim. Na sala pouco iluminada e
decorada com motivos artesanais e pequenas esculturas de pedra-sabão, ele
confessava preferir que seu aluno jamais aprendesse, que se mantivesse
eternamente naquele ano, para que pudessem passar mais algum tempo juntos.
Na
tarde seguinte, assim que se viram sozinhos, o professor fechou a última sala
do corredor e trancou a porta por dentro.
O
menino se lavava convulsivamente, esfregando a própria pele com uma esponja
como se quisesse abortar do próprio corpo a experiência que tinha acabado de viver.
Mascava pedaços de canela como que para expurgar-se, mas também para tirar da
boca aquele gosto azedo de pau. Sua pele ainda estava quente. Masturbou-se ao
som de Simon & Garfunkel – trilha sonora apropriada para a primeira noite
de um homem.
A
fim de escapar da condenação a uma modorra destinada a pecadores, estudou muito
nas semanas seguintes. Deixou de frequentar os plantões de dúvida privativos. Refez
os cadernos. Dominou o ciclo trigonométrico, as propriedades do logaritmo e os
números complexos. Era a melhor forma de livrar-se daquele homem e daquelas
lembranças. Que, incrivelmente, lhe causavam uma forma desconhecida de prazer.
No
dia da prova final, a criança se sente segura como um herói de epopeia. Faz o
exame sem rasurar um traço de seus cálculos feitos a caneta.
Quando
terminou, levantou-se e viu-se amassando aquele pedaço maldito de papel.
Enfiando-o goela adentro do professor, de modo a tirar-lhe o ar e a capacidade
de querer. Entretanto, apenas jogou a prova sobre sua mesa. Não precisa corrigir. É um 10.
Ao
contrário do que se pensa, a matemática não é o país da solidão. São ilhas sobre
as quais é preciso navegar, quiçá confundindo-se com seu próprio movimento. Ao
contrário do que se pensa, as ilhas não estão presas no mesmo lugar; movem-se
sobre a lava, eventualmente entram em colapso ou provocam profundos acidentes
geográficos. Como um conjunto que se dobra sobre si, numa autorreferência cujo
resultado é, c.q.d.:
o absurdo
Conto
escrito para o encontro de 24/03/2015
Francisco Ohana é economista e participa de atividades que o mantenham ligado às artes, principalmente literatura, teatro e música. Frequenta o clube de leitura do Baratos da Ribeiro desde fevereiro de 2014.
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