A doença - Glória Celeste de Brito



A doença

Tive boa educação, e o que se convenciona chamar de “berço”. Alguns jornalistas me chamavam de dândi do século XXI, pois apesar de antenado tinha uma vasta formação clássica e falava algumas das línguas ocidentais com fluência. A comparação com Wilde era inevitável.
Na minha juventude descobri a tecnologia, e com ela a sensação de ser o Grande Irmão. Isso foi o início do meu fim, o cinza da alma das pessoas começou forçosamente a me invadir. Não, eu não era inocente. Mas até aqueles que considerava amigos eram apenas puxa-sacos sofisticados, sanguessugas que queriam aparecer comigo nas fotos das colunas sociais ou apenas queriam uma sobra da fortuna da minha família.
No final da Universidade, apesar de os professores sempre elogiarem meu brilhantismo eu nunca esquecia que do meu pai ao meu trisavô, todos eram mecenas da Instituição. Até que conheci John. Inteligente, meio rebelde. Um fodido. Nenhuma pessoa da aristocracia com que andava antigamente entendia como eu andava com um Zé Ninguém. Mas toleravam a sua presença por minha causa. Ele simplesmente falava tudo o que os outros falavam por trás. Me apaixonei por aquele homem, o primeiro e único da minha vida. Os repórteres eram um incômodo, mas ele sabia me levar para lugares onde esses otários nunca iriam.
Mas o amor tem suas consequências. John andava pela parte suspeita da cidade, e devia muito dinheiro a um dono de cassino que estava envolvido com tráfico. John, meu príncipe loiro não sabia que em vez de mandarem matá-lo, iriam fazer pior.
Depois de prometer ao dono do Cassino que pagaria, o dono docilmente aceitou, e ainda por cima nos ofereceu a suíte presidencial por dois dias! Foi ótimo. Mas era uma armadilha! Eles tinham colocado ópio no nosso XY. John disse que essa é uma estratégia comum entre os traficantes, e que ficaria do meu lado para tentarmos achar uma saída. Cada vez mais tinha certeza do amor daquele homem por mim.
Saímos de lá prometendo nunca mais voltar, mas o FRIO... voltamos prometendo mundos e fundos não aguentávamos mais os suores, a pele parecendo a de uma galinha depenada, tremores, câimbras intoleráveis na barriga e uma insônia enlouquecedora. Tentei me matar, mas a fraqueza me impedia.
A primeira exigência foi o pagamento da dívida de John. Obedeci prontamente, antes do vício ele nunca permitiria que isso acontecesse. Os empregados do cassino já deviam estar acostumados àquilo: assim que paguei a dívida de jogo, nos forneceram um saquinho com vários supositórios. Saímos de lá imediatamente. John conseguiu depois um fornecedor de confiança com os seus contatos.
Essa seria a primeira de muitas vezes que eu pagaria algo, até que minha família bloqueasse meu acesso aos bens da empresa. John foi fiel nos primeiros tempos, se prostituía para nos sustentar. A alimentação começou a ser uma coisa secundária. Até que me largou pelo dono do Cassino, que tinha uma provisão infinita da droga. Ele morreu de overdose depois de se mudar, pouco mais de um mês depois.
Depois de dar uma de Rainha Vitória, como se diz na gíria dos usuários, traficar ópio e morfina; os seis meses de prostituição enquanto meu corpo ainda valia alguma coisa…estou sem saída não tenho como arranjar mais dinheiro. Nem a droga é boa sem John por perto. Até tentei ficar sem tomar. Não consegui. Nunca vou conseguir sair desse labirinto de merda. Tomei o suficiente para sair daquiiiiiiiiii.

Inspirado em Almoço Nu de William S. Burroughs, e nas peripécias de uma conhecida junkie, até dei o livro de presente para ela. Trilha sonora ideal: Lust of Life.


Conto escrito para um encontro em 2007 (!)

Glória Celeste trabalha na área administrativa e com pesquisadores; como redatora escreveu projetos culturais e institucionais, também para mídias sociais. Já cantou, produziu artistas de MPB e eventos culturais. Formada em alemão na UFSC, fez parte do corpo editorial da revista cultural Poité e participa do Clube da Leitura desde os primeiros encontros - teve um conto publicado na primeira antologia.  




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