Mote do encontro 10/03/15
Texto
lido por Igor Dias
K. - relato de uma busca
"O
que trazia aquele grupo à reunião era algo insólito. O Exército alegava que
nada disso tinha acontecido, apesar de um dos presos, apenas um, ter escapado e
testemunhado tudo. Os familiares queriam enterrar seus mortos - que eles já sabiam
mortos, mais de cinquenta, diziam, sabiam até a região aproximada em que foram
executados, mas os militares insistiam que não havia corpo nenhum para
entregar.
Um
rapaz encontrou-se com a esposa no Conjunto Nacional para almoçarem juntos e os
dois nunca mais foram vistos. À medida que falava, a mãe do rapaz mostrava aos
vizinhos de assento as fotos do filho, da nora e do netinho. Um senhor
levantou-se, disse que viera de Goiânia especialmente para a reunião. Seus dois
filhos, um de vinte anos e o outro de apenas dezesseis, foram desaparecidos.
Esse senhor gaguejava, parecia em estado catatônico. Foi o primeiro a usar a
expressão 'foram desaparecidos'. Também trazia fotos dos filhos. Depois dele,
K. tomou coragem e contou a sua história.
Já
havia caído a noite e os relatos prosseguiam. Variavam cenários, detalhes,
circunstâncias, mas todos os vinte e dois casos computados naquela reunião
tinham uma característica comum assombrosa: as pessoas desapareciam sem deixar
vestígios. Era como se volatilizassem. O mesmo com os jovens do Araguaia,
embora estes já se soubesse estarem mortos. A freira anotava caso por caso.
Também recolhia as fotos trazidas pelos familiares.
K.
tudo ouvia, espantado. Até os nazistas que reduziam suas vítimas a cinzas
registravam os mortos. cada um tinha um número, tatuado no braço. A cada morte,
davam baixa num livro. É verdade que nos primeiros dias de invasão houve
chacinas e depois também. Enfileiravam todos os judeus de uma aldeia ao lado de
uma valam fuzilavam, jogavam cal em cima,depois terra e pronto. Mas os goim* de
cada lugar sabaim que os seus judeus estavam enterrados naqueloe buraco, sabiam
quantos eram e quem era cada um. Não havia a agonia da incerteza; eram
execuções em massa, não era um sumidouro de pessoas."
*Plural
de pessoa não judia; o singular é gói. (Nota do livro)
KUCINSKI,
Bernardo. K. – relato de uma busca.
São Paulo: Cosac Naify, 2014.
Bernardo
Kucinski é um jornalista e cientista político brasileiro, colaborador do PT e
professor da Universidade de São Paulo. Ministra a cátedra de Jornalismo
Internacional, entre outras.
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