Da violência - Francisco Ohana



Da violência

Vejo-os desde aqui, personagens, na busca de um autor digno de sua comédia. Capaz do mínimo enredo, de qualquer impressão de sentido nas orações subordinadas e pontos finais que se deixem entrever no texto esdrúxulo. Vamos à fala final, ao fim da partida. Que correspondem, ainda assim, à parte menos evidente das relações sociais de produção de um mundo ora seco, ora musical, mas sempre – sempre – teatral. Não há nada que não possa ser feito ou dito, que impeça alguém de aprender as regras de interesse. Não há ninguém digno de salvação – afinal, que pensamos de nós mesmos? –, de maneira que nos resta ser algo mais ou menos próximo do que somos e bancar a tragédia da escolha. Em dita condição, não há especialidade que esteja além do raciocínio, da visão, tampouco desajustes malsãos o bastante para justificar a opinião de que algo esteja fora de lugar. Não está, e assim é. Essa abordagem parece áspera de início, mas contribui para o tratamento de conceitos antigos sobre felicidade e ideias relacionadas, o que pode prestar algum serviço ao bem viver, apesar dos arranhões.

Naqueles dias de maior violência, havia-se perguntado sobre as implicações de estar casado. Tratava-se de um contrato que presumia exclusividade, fidelidade e demais virtudes do círculo das pretensões. O destino melancólico do seu namoro de portão (pensava), triste o suficiente. Era interessante, mesmo engraçado, que houvesse feito dela um monstro de imensos olhos verdes, mas todo delicadeza. Certa vez ela se irritou, quebrando sem querer uma porção de objetos com braços que se moviam descontrolados. Meteu então uma sandália rasteira e um sorriso leve no rosto, enquanto desviava dos cacos no chão. Os chinelos grandes, o milho em conserva na comida, os pés sujos e as mentiras que diziam eram elementos de um mistério que agora lhe pareciam ternos e lhe nublavam os olhos, enchiam-nos d’água. Se, por um lado, a perda lhe sublinhava generosas liberdades, por outro, sua arrogância era tanta que a ex-mulher, seus gostos e preferências o comoviam. E o apogeu da emoção acontecia no desejo inescapável de não falar nem daquele amor, nem de qualquer outro. Andava arredio.

Ele – não quero falar de amor não convém quero olhar a tudo de lado negar uma vez mais e ainda outra perder teu sorriso te resenhar não há nada de transcendente aqui sobre o que mesmo ela quis conversar mas dizer as coisas pode doer porque existir é chato falar é chato as pessoas esquecem então prefiro te errar te alar os ombros mentir criar um mundo todo particular para não ter de trazer assuntos dessa natureza à baila me toma um tempo desgraçado desiste solta a língua à vontade pisa na areia espalha teu corpo mas há chance de enjoar porque depois se vê tudo de outra forma não há o que resista à experiência tátil os olhos viram o peito late a nuca sua as vontades sujam uma guernica na cabeça ensolarando a hora de ir embora te pago o que quiseres aceito teu cinismo mas vá embora sou assim mesmo escroto tenho sede fome mas te adiantei uma série de questões nada devo assim não se perde mais tempo com moralidade esse sentimento te acossa ainda mais esse sentimento fantoche ainda mais porque bem sabemos que tenho escrúpulos alguma inveja alguma dor alguma derrota algum silêncio para não seres ninguém por alguns instantes

Desejava-lhe feliz aniversário, mas via o tempo de modo bastante impróprio, encantava-lhe vê-la envelhecer: dava a impressão de que ele, a seu turno, permanecia. Como se não prosseguisse na mesma linha, no mesmo giro. A falsa impressão, porém, fazia-no detestá-la menos, havia os brigadeiros, empadas, bolas coloridas, enquanto ela se distanciava do passado próximo. À medida que a vida era gasta, ela dava um passo adiante e parecia afastar-se de seu campo de visão, embora se tornasse cada vez mais suscetível ao que ele dizia. No pior dos cenários, as comemorações significavam um punhado a menos de palavras e uns disfarces a mais, para dizer o mínimo. Mas, sobretudo, ao passo que ela envelhecia, distanciava-se da imagem que ele trazia na memória, alegrando-o, nublando-lhe os olhos, enchendo-os d’água. Até que um sentimento de autopiedade o dominasse e sua percepção se tornasse novamente moralista.

Ela – Mesmo quando nada pareceu funcionar, estarmos juntos foi melhor que não estar. Renunciar a tudo é como um trem não embarcado. O problema são as agressões que nos temos infligido, essa forma gradual de abandonar o jogo, ainda mais danosa que a pressão da sua presença. Aceitar que se trata de um esquema com suas concessões não significa que minta bem para mim. Não mente, mas não me atiro a esmo sob qualquer ameaça, pois estar contigo implicou uma série de riscos. Estive tentando, voltava, e as coisas se resolvem, cada um com sua cruz. Porque fomos bobos um do outro, nos tapeamos e nos permitimos manipular. Mas se perdemos o medo, não resta nada.

Ele – Pois bem, os instantes a teu lado não me acercam do agrado, mas do contrário. Vieste quando eu procurava apenas uma forma mais amena de suportar o tédio. Não buscava nada e te vi, não tinha propriamente essa aspiração. Tampouco sei por que razão não amá-la é mais prazeroso do que fazê-lo. Espero que entendas sempre e melhor o quanto desejo que não sejas minha, que não me pertenças. Pois não te amar é descobrir-me um pouco mais e, se por um momento desejo possuí-la, recuo.

Ela – Tiveste versões falsas e insuportáveis de mim, mas fui tua. E não o fui.

Ele – Se quiser, vá. Sempre foi senhora de si.

Ela – Matar-me resolve? Sei ir embora e não quero a liberdade que me ofereces.

Ele – Já pensou em cometer suicídio?

Ela – Não.

Ele – Nem eu. O que pensas quando mentes?

Ela – O mesmo que quando falo a verdade.

Ele – Que te cuspam na cara, no túmulo, e mijem em ti.

Imaginara durante meses as cenas da festa. Flores vermelhas no miolo de bromélias, arranjos e adereços do gênero. Esperara em vão e criara expectativas e hábitos que se provaram inúteis, o que culminou com a atribuição, à mulher, da responsabilidade pelo declínio das relações familiares. Foi a forma encontrada de garantir-lhe o direito à covardia física e moral, em meio a momentos do mais alto grau de intimidade.


Conto escrito para o encontro de 10/06/2014


Francisco Ohana é economista e participa de atividades que o mantenham ligado às artes, principalmente literatura, teatro e música. Frequenta o clube de leitura do Baratos da Ribeiro desde fevereiro de 2014.





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