Pessoas promíscuapromíscuas de água e pedra, de Thais Lancman


Pessoas promíscuas de águas e pedras - Thais Lancman 

“Barulho de motor. Um pequeno forno e tubos de ensaio que formavam o laboratório, ou ateliê, como Miri preferia chamar. Era lá que ela passava as horas, obstinada em transformar o ofício em negócio eficiente. Foi-se o tempo em que a estação de trabalho era sua cama, e que os líquidos eram armazenados em copos de requeijão, deixados ao sol para um processo de evaporação moroso. Passado. Miri pausou a centrífuga para ouvir o que se passava no quarto ao lado. Choros e soluços, estava tudo indo de acordo. De volta ao trabalho, Miri pensou, satisfeita, em como já não se parecia mais com aquelas moças.

Miri tinha estabelecido metas na coleta de lágrimas para as funcionárias cumprirem, um volume que sabia bem ser alcançável, era mais uma questão de empenho do que vocação. Os tubos de ensaio deveriam ser entregues a Miri a cada três horas, e ela cuidava do resto. Tinha esperança de que alguma delas logo pudesse ser sua substituta, se fosse de confiança. Miri queria se dedicar à administração do ateliê. Ela sorriu ao pensar nesse futuro, em como ele estava próximo, e sorriu, porque não chorava.

Poucos meses atrás, a situação era outra. Miri era a lamurienta desempregada que morava de favor com um amigo. Era ele quem fazia as compras e que tirava o computador do colo de Miri, quando chegava à tarde e notava que ela adormecera lendo a Wikipedia. O seguro-desemprego de Miri serviu como uma bolsa de estudos para ela estudar a biografia de artistas. Com o rosto inchado, os olhos molhados, ela descobriu Michelangelo, que mesmo depois da Capela Sistina se autodenominava um escultor, e Portinari, morto de intoxicação por causa das próprias tintas. As histórias lhe encantavam pois eram permeadas pela tristeza, pelo isolamento, pelo pessimismo, e a combinação desses três elementos culminava nas obras de arte que tinham tornado célebres os biografados. Miri lia verbetes que resumiam aqueles homens em uma fórmula matemática. Infelicidade com infelicidade igual a gênio.”

(Mote lido por José Petrola para o encontro de 01/06/2021)


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