Camming, por Guilherme Preger

 

Camming


Diga-me o que você está pensando...


Bem, essa pandemia está me fazendo repensar algumas coisas na minha vida, mudar alguns valores...


Hummm. Conte-me mais sobre isso.


Foi um pensamento que tive desde aquele problema com o Guido. Já te falei sobre ele. Meu melhor amigo, mas que me decepcionou por ter me enviado umas fotos meio inapropriadas. A princípio fiquei muito zangada com ele, puta mesmo. Depois conversando com algumas amigas do peito, fiz novamente as pazes com ele. Afinal, nós nos adoramos.


Vocês se adoram em que sentido?


Bem, é só amizade. Nada demais. Nunca transamos. Quer dizer, nunca nos relacionamos sexualmente.


Você sabe que não há relação sexual, segundo a psicanálise.


Sim, isso eu estou aprendendo. Você já me explicou. Essa pandemia está sendo uma provação. Ela me pegou solteira. Há mais de um ano que não durmo com ninguém. Tive que comprar uns brinquedinhos. Minhas amigas todas estão se divertindo com brinquedinhos. Às vezes funciona melhor do que parceiro ou parceira.


Hummm...


Pois é, meu desencontro com o Guido me fez repensar a minha vida sexual. Eu não curto muito essa coisa do vídeo pornô, sabe, tipo porn hub. Me dá sono, tédio, sei lá. Ficar olhando os outros transando não me interessa. Não consigo me excitar. A Vanessa, por exemplo, que é uma das minhas Best Friends, me aconselhou a tentar o camming. Todas as minhas amigas estão no camming.


O que é o camming?


O camming é isso, um blind date virtual. Você tem um encontro romântico remoto. Você faz uma sessão de conferência com um crush, ou alguém que você fisgou nos aplicativos de namoro, faz um prato legal, abre um vinho, vai conversando com a pessoa selecionada. E aí conforme o vinho vai subindo, as palavras vão descendo, e você começa a falar algumas coisas íntimas, uns desejos reprimidos...


Desejos reprimidos? Vocês nunca me contou de seus desejos...


É que eu tenho essa dificuldade de me abrir, sabe? Eu sou uma pessoa tímida. Meus pais me criaram para casar, sabe? Essa é a verdade. Eu acho que eles morrem de desgosto de ver a filha solteira e sem filhos. Eles sonham com netos.


Você quer ter filhos?


Eu não estou nem pensando nisso. Agora na pandemia é algo que não tem nem como encarar. Aliás, no momento eu acho uma irresponsabilidade colocar mais gente no mundo, com essa crise ecológica. Esse vírus é um desastre ambiental, sabia disso? Li isso na internet. Mas não é esse o problema central. No momento o que eu quero é transar, foder, ter prazer. Esta é a verdade. Filhos eu não estou pensando no momento

.

Foder, transar, ter prazer. Conte-me mais sobre isso...


Gente, eu não sei como isso saiu da minha boca. Desculpa. Não era exatamente isso que eu queria dizer. Estou confusa...


Você estava falando sobre o camming...


Ah é mesmo, o camming! Agora estou com vergonha de continuar. Onde eu estava? É assim: a conversa vai ficando picante, maliciosa, aí você começa a tirar as peças da roupa, uma a uma, cada um no seu ritmo, e vai fazendo poses eróticas, fazendo dancinha, com carinhas safadas, dando beijinho na tela, lambendo a tela, até ficar ambos nuinhos, e aí cada um começa a se estimular, com ou sem brinquedinho, e o lance é então gozar junto. Em geral, os rapazes ejaculam na tela do celular ou do laptop...


Hummm... Mas isso te satisfaz?


Se me satisfaz? Ah, sinceramente não sei. Mas é tipo “o que tem para hoje”, não? O que mais a gente pode fazer nessa pandemia? Eu acordo de manhã, abro minha caixa postal, respondo os e-mails, depois tem a reunião do teletrabalho, tem o pedido de entrega do almoço por aplicativo, tem as notícias do site, tem as lives noticiosas, tem as lives de entrevistas, e depois do trabalho tem a yoga online, tem a conferência com meus pais para saber como estão, têm as fofocas com as migas pelo zap, tem a aula online do curso, tem as lives de música na hora do jantar, mais pedido de entrega, mais lives de entrevista; e, de noite na cama, sozinha com meus travesseiros, tem um filminho, uma série por demanda, e depois tomar remédio para poder dormir e no dia seguinte o programa continua o mesmo. Até a terapia agora é online! O que mais eu poderia fazer? Sair por aí dando tiro com o primeiro que desse match no aplicativo? Sem saber com quem ele esteve, se aglomerou, e além de ter de transar de camisinha, agora tem até de transar com máscara cirúrgica, ou mesmo com escafandro para não se contaminar, O QUE VOCÊ DESEJA QUE EU FIZESSE?


Eu não desejo nada além de que você não ceda de seu desejo. É sobre isso que estamos conversando. Sobre o desejo que não cede, que persevera. Mas por hoje o tempo da sessão se encerrou. Na próxima vez você me diz mais sobre o que está pensando...

(conto apresentado no encontro de 09/03/2021) 

Guilherme Preger é escritor virtual que faz camming literário. 



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