O amor de Pedro por João, por Tabajara Ruas

Ela tornou a rir a sua risada perfeita e escarnecedora, cravando-lhe os olhos curiosos e atentos. Marcelo sentiu que se enchia outra vez de desejo e de fúria, da necessidade de provar a essa mulher que era homem, sentiu vontade de arrancar-lhe a leve camisa de linho que vestia. Mas, no dia seguinte, ao voltar da praia, é que foi o meio-dia em que encontrou-se com ela na porta que dava para a varanda, em que cegado por súbita e louca coragem, enlaçou-a pela cintura esperando que o mundo desabasse, em que sentiu as pernas fraquejarem ao vê-la apenas sorrir e apoiar displicentemente o braço no seu ombro, em que riu para sua ereção impossível de dissimular, em que o copo de caipirinha se estilhaçou no piso oferecendo ao ar da casa o cheiro acre e adocicado da bebida, em que a ereção transformou em força a fraqueza de suas pernas, em que sentiu em si um cavalo, um jovem cavalo suado no pasto, um garanhão arfante, de cascos afiados e longas crinas negras, que relincha, que freme, que fareja cheiro de égua no cio, que ergue as patas, o pênis negro e molhado, que as apoia no dorso da fêmea, as narinas ávidas aspiram o verde aroma dos eucaliptos detrás da casa, os ouvidos a ouvem gemer e pensar no remoto dia em que Deus separou a luz das trevas, as roupas se separam dos corpos, o sol os ilumina, queimados, na varanda – é hoje, disse Hermes, às duas da tarde – as mãos se buscam, se tateiam, se experimentam, se reconhecem, e no Segundo Dia um firmamento azul cobriu as águas e ela disse aqui mesmo amorzinho aqui no chão – tu faz a segurança, disse Hermes, tu fica na porta, Guiné examinava-o com a ponta do olho, o Mineiro fumava, o carro rodava no trânsito da quarta-feira – e a língua dela entrou na sua boca, e degustou-a e bebeu-a e mordeu-a e no Terceiro Dia formou-se a terra e em sua superfície houve pastos e ervas que deram sementes e árvores frutíferas e isso era bom e a mão dele explorou o corpo dela que começava a transpirar e a cheirar a mulher – lá vêm os outros, disse Hermes e estacionou na frente do banco, seu coração batia – e ela me morde aqui amorzinho aqui põe tua mãozinha aqui e ele trêmulo como as estrelas brilhando no Quarto Dia da Criação e abriu as pernas dela que obedeceram resbalosas e tocou a parte úmida e os pelos castanhos do ventre – agora, disse Hermes, engatilharam as armas, colocaram as máscaras, abriram a porta do banco, arreda povo que vai começar o duelo do Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro! os redondos olhares de espanto – e as pernas se enroscaram e se colaram de suor e ele sentiu a frescura das lajes vermelhas do piso nas costas e a mão dela acariciando seu pênis contra o rosto e no quinto Dia o mar povoou-se de grandes monstros escamosos e a língua dela percorria a geografia do corpo dele numa viagem e surgiram na terra animais vivos de diferentes espécies, antílopes de formosas aspas em curvas, répteis de tamanhos microscópicos, deslumbrantes pássaros de plumagens caleidoscópicas, felinos de corpos reluzentes e gestos majestosos – rápido passa o sinal, disse Guiné, riam histericamente, davam-se palmadas, olhavam extasiados as ruas cheias de sol, cinco minutos, cinco minutos, nunca pensei que fosse tão fácil, viu a cara do gerente? e a velha que desmaiou? riam histéricos, davam-se palmadas – e ela com os olhos transtornados e uma voz de gata pediu agora agora vem vem e no Sexto Dia foi criado o homem à imagem e semelhança do Senhor – perdeste o cabaço Meleninha e Hermes deu uma palmada no ombro dele e ele olhando as ruas para sempre transformadas respondeu não me chama mais de Meleninha porque eu já sou o coronel Aureliano Buendía – e ele e ela tornaram-se um só durante um desesperado instante de prazer que parecia uma luta.

No Sétimo Dia o Senhor descansou.

(Lido por João Mattos para o encontro de 11/05/2021)

Fragmento de O amor de pedro por João, de Tabajara Ruas.

Editora Record, 1998. Página 270ss.


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