Surpresas não se chamam pelo nome, por Clube da Leitura Raiz

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Tinha uma decisão a tomar naquela semana: comparecer ou não à comemoração de 25 anos da formatura da faculdade. Precisava pesar com cuidado. Podia ser legal reencontrar aquele pessoal todo, talvez reviver um pouco do clima dos anos 90, na certa alguém puxaria no violão a velha trilha sonora. Mas também poderiam acontecer momentos meio pra baixo, a Mariana fazendo um dos seus comentários amargos, e aquele baixinho (como era o nome dele?) com sua antipatia proverbial. E se aquela pessoa viesse – melhor nem falar o nome dela – aí é que entornava o caldo. Mas a figura não devia vir não, a notícia era que ela estava na Itália, já fazia 15 anos. Em todo o caso, tinha uma situação meio delicada aí, os amigos a perguntar como é que a história rolou depois da formatura, sempre difícil comentar esse imbroglio. Bem, mas isso já fazia muito tempo, talvez desse pra tirar de letra. O mais complicado seria ouvir as baboseiras políticas do Nestor, que nasceu com o rei na barriga, todo sabereta, entendedor de tudo e mais um pouco. E só falando asneiras, seus artigos no blog estavam aí pra comprovar.

O pior é que a semana estava mesmo complicada. Não bastasse decidir se iria ou não a tal festa, ainda tinha que se haver com a saúde dos dois filhos. A Pâmela estava com catapora, e o Júlio havia quebrado o braço. Nada muito grave. Para o Júlio, que acabara de completar 15 anos, era chato ter que ficar sem usar as mãos justo agora que ele começava a tomar gosto pelas aulas de piano. O pior na verdade era acompanhar tudo à distância. Na separação traumática, o menino acabou ficando com os avós no Espírito Santo. Dizia querer ficar por lá mesmo, tinha bons amigos, e não passava pela cabeça dele morar nem com a mãe nem com o pai. A Pâmela, por outro lado, lidava com a doença com uma maturidade de adulto, e do alto dos seus 10 anos, aceitava o repouso e a febre em casa sem reclamar. “Será que deixo a Pâmela com alguém e vou a essa festa? Ou faço dela o álibi perfeito para não ir?” Os pensamentos passavam velozes em sua cabeça, mas, não conseguindo fechar posição, achou prudente sondar um pouco melhor o clima. Tomou fôlego para uma conversa ranheta, pegou o celular e decidiu ligar para o Nestor.

- Ei, Nestor, você soube da festa dos 25 anos de formados? 

- Alguma coisa Pablo. Você sabe, não tenho paciência para essas festas. Ainda mais daquele pessoal. Ando bolado mesmo com uma verruga que apareceu no meu dedão e que tem uma aparência ainda pior que a desses encontros. Tem uns tipos de miniespetos e é meio esverdeada. Se aperta sai uma gosma nojenta. Até sonhei com isso a ponto de achar que era só um pesadelo, mas quando acordei ela ainda estava lá. Como pensar em festa com uma parada dessa no pé?

- Credo, Nestor. Onde você foi arrumar isso?

- Não sei, estive num sítio pisando em chão com bosta de vaca, mas não sei se verruga pega, eu sei lá como é isso. Quando eu era criança elas brotavam no meu joelho. Minha mãe passava esmalte colorido para sufocá-las e elas caíam. Essa tá sinistra. E por aí, como estão as crianças?

- Todos bichados também. Parece que estamos sempre com alguma encrenca para resolver.

- Se quiser saber dessa festa, melhor ver com a Pilar que é mais animada para reuniões de amigos de antigamente. Se souber de alguém de dermato me passa o contato, tô procurando boa referência que aceite plano.

Desliguei o telefone pensando que não era novidade o Nestor estar com uma verruga no dedão. Da penúltima vez eram pedras nos rins. Liguei dias depois pra saber como ele estava, e as pedras viraram uns caroços espalhados pelo couro cabeludo. Hipocondríaco de direita. Quem aguenta? Esqueci de pedir pra ele o telefone da Pilar. Tenho até medo de ligar e a verruga já ter virado um câncer de fígado. 

Redes sociais. Pessoas animadas sempre têm perfil nas redes. Vou procurar por Pilar nas redes então. Ela e a Martha eram muito amigas, quem sabe assim encontro também a Martha? E descubro se ela já voltou da Itália, se vai à festa. Eu aqui arrumando sarna pra me coçar e quem pega verruga é o Nestor. Chega a ser engraçado. Não, não, melhor deixar quieto, nem sei se quero mesmo saber dela. Ando tranquilo. Tranquilo até demais, ok, nunca fui de tanto sossego, mas, ora bolas, os filhos, a ex, muita coisa junta para administrar...

Vamos lá, Pilar... hum, como era mesmo o sobrenome dela? Slovotska. Isso! Pilar Slovotska! Diacho de nome esquisito pruma carioca com ascendência indígena. 

Pilar Amanawara Slovotska. Pablo se lembrou do nome dela e a achou nas redes sociais. Filha de um polaco antropólogo missionário católico com uma indígena Amanawara. Mandou uma mensagem “como quem não quer nada”, perguntando se ela iria na festa dos 25. Mas a resposta o surpreendeu, ou quase: “Como? Vocês estão malucos, festa de formatura nessa pandemia? Vocês são mesmo uns alienados. Bem que me arrependo de ter estudado num colégio de playboys. Meus pais podiam ter me colocado num colégio público”. Pablo lembrou-se dos rumores que Pilar havia se tornado uma lulopetista fanática, promíscua. Lembrou-se que, adolescente, ela circulava de ônibus de camiseta sem raspar os pelos das axilas, provocando ojeriza nos e nas colegas. Diziam que fumava maconha escondida no pátio da escola. Pablo se sentiu decepcionado. Com Pilar não ia se dar bem. Pablo não era de direita, mas também não era de esquerda. Mas tinha aversão a petistas. Poderia conversar com o direitista-neurótico Nestor, mas com petista não havia diálogo possível. Petista não raciocina nem faz autocrítica. E como assim, medo de pandemia? São muito radicais esses petralhas.  A festa seria de máscaras observando todo o distanciamento social. Foi exatamente nesse momento que Pablo sentiu um calafrio e começou a espirrar e a tossir. Caramba, será praga daquela petista-promíscua-de-cabelo-nas-axilas? A verdade é que sua temperatura começou a subir e até de noite já estava em 38° C. 

Pablo tomou um comprimido pra febre e resolveu dormir. De noite, lá pelas 4 da manhã acordou suando frio, não por causa da febre do dia anterior, tinha tido um baita pesadelo. Tinha sonhado com a tal festa de 25 anos. Quando entrou no salão de festas se deparou com Pilar que foi logo dizendo que tinha uma surpresa: Martha está aqui! Ao ouvir aquele nome seu coração começou a disparar e foi logo perguntando: onde? Ali no bar, disse Pilar. Pablo então começou a procurar entre as pessoas que estavam no bar a Martha por quem tinha se apaixonado 25 anos atrás. Mas ninguém se parecia com ela. Onde?, perguntou de novo. Ela tá um pouco diferente, aquela de cabelo ruivo, disse Pilar. Foi aí que a tal mulher de cabelo ruivo se virou e veio andando em sua direção. Não, não podia ser, pensou ele, essa ruiva em nada se parecia com a doce Martha de cabelos longos e castanhos. Essa tinha cabelo curto e raspado de um lado, tatuagens por todo o corpo, um vestido preto curto e colante, colares e pulseiras extravagantes. Não, não podia ser. Saiu do seu devaneio, quando ouviu: Oi Pablo, há quanto tempo!, disse Martha.

Pablo acordou suando frio, com muita tosse. Pegou o termômetro, mediu a temperatura de novo. 38 graus. Tomou outro comprimido e foi dormir um pouco. Não devia ser nada de mais, só falta de descanso. Andava se estressando muito no trabalho, até faria bem dormir mais um pouco e, se estivesse melhor, rever os amigos na festa. Desde que Martha não estivesse lá. Desde os tempos da faculdade eles não conseguiam se falar. As últimas vezes em que teve notícias de Martha, foi através de Pilar. Pablo olha nos perfis de Pilar nas redes. Dezenas de fotos em manifestações de rua, com bandeiras do PT. Muitos posts sobre a pandemia. Pablo respira fundo. Sabe que será um exercício de paciência ter de lidar com as intromissões de Pilar em sua rede social. Mas a vontade de rever os amigos fala mais alto. Procura nos amigos dela. Na lista de pessoas que talvez conheça, a rede social indica o perfil de Martha Rossi, que mora em Milão. Em sua foto de perfil, está numa região de montanhas, quase irreconhecível debaixo das roupas de esqui.

Foi passando as poucas fotos para confirmar, atordoado, não, essa mulher não era a Martha. Das imagens embaçadas que ele conservava daquela época a única nítida, que podia decorar, era a imagem dela, naquela última festa falando para ele que não entendia. A vida para ele sempre foi como um chuvisco repentino, e ele era dessas pessoas que xingam as nuvens e não a si mesmos por ter esquecido o guarda-chuva. O que era que ele não entendia? Como era possível? Era a época dos telefones residenciais seu magoado narcisismo o fez ligar para exigir uma explicação, e passar, pela agonia interminável do tocar do telefone. Ela mesma atendeu e no final de uma conversa forçada e angustiante falou a sentença antes de desligar - Você não entende, que para dar certo entre nós alguém deveria mudar radicalmente, e você não se enxerga o suficiente como para fazer isso. Esse foi o final, e agora, aí está ele, se aproximando da tela para descobrir nessa Martha nova algum gesto, ou rasgo familiar daquela outra Martha, e não consegue. Precisava com urgência alguma testemunha de que essa impostora não era a Martha, embora não o confessasse, essa inquietação urgente insuflou nele uma paixão vital que há tempo não sentia.

Pablo respirou fundo. “Alguém deveria mudar radicalmente”, lembrou, e essa frase passou a assombrá-lo. Ele não era um radical, definitivamente. Não se dava bem com radicais, e a prova era a antipatia que o perfil de Pilar lhe causava. É verdade que há 25 anos eram todos mais inconsequentes e as meninas vestiam menos roupa, menos formais e mais amarrotadas. Mesmo a Pilar, com suas axilas peludas, era mais sexy que as executivas e assessoras em que se tornaram suas colegas de turma, ele tinha que admitir. Na época, a preocupação social era sobretudo idealista. Hoje, Pablo queria calçadas limpas de mendigos e camelôs e temia a concorrência dos jovens desconstruídos no trabalho. Afinal de contas, não era mais aquele charmosão de 1996. “Mudar radicalmente”... Como?

Abriu a garrafa de whisky e botou uma dose. Tomou de uma vez, caubói. Botou outra e ficou olhando para a tela. Abriu uma mensagem e escreveu: “E aí, Martha, quanto tempo! Soube que você vai à festa dos 25 anos da galera. Verdade? Como vai a vida?” Como estivesse tremendo e suando, Pablo apertou rapidamente o “Enter” e desligou o computador. Seu coração palpitava. Olhou em volta para seu próprio apartamento. “Que horror, como você é careta, Pablo”, pensou. E, de assalto, se perguntou por qual razão seu filho não cogitava morar com ele. 

Acabou cochilando no sofá. Acordou de repente, assustado, com o aviso de e-mail na caixa de entrada. Martha. Respirou fundo e abriu. 

“Meu doce Pablo, quanta saudade! Abri um vinho e estou bebendo em sua homenagem. Não, não vou à festa do pessoal da faculdade, mas devo ir ao Brasil em breve. Meu filho Pietro ama essa terra, adora passar férias com os avós mas gostaria mesmo é de morar aí no Brasil, dá pra acreditar? Roma continua linda, tenho um ótimo apartamento aqui no Trastevere, mas depois da separação confesso que também fiquei com uma certa vontade de voltar... esse país é uma porcaria mas é onde me sinto realmente em casa. Queria ser mais cidadã do mundo, mais desapegada , mas a verdade é que acho que estou envelhecendo e ficando meio sentimentalóide, rs. Volta e meia me pego pensando em você. Acredito que você deve estar num casamento sólido, com uma familia feliz e bem estruturada. Colhemos o que plantamos, não é mesmo? Pena a gente não ter dado certo. Sinto saudade dos nossos papos, da sua sinceridade, da sua risada. Ih, o vinho já está fazendo efeito...fico por aqui. Um beijo”

Espantoso, transcendental como sanduiche natural, nem sabia de onde havia vindo a frase, mas obviamente era o efeito Martha sobre o ser. Aquela covinha no canto da boca quando ela ria. Como será que ela vivia em Roma? Com certeza muita gente que morava fora do Brasil agora teria que voltar. Será que alguém que já estava vivendo há tanto tempo lá fora como ela sofreria o impacto das bizarrices daqui? O Insalubre veio tirando dinheiro de todo mundo, até dos militares, aliados dele. Ele era a encarnação de Nero, só podia. Não era hora de ficar pensando na praga, melhor só Marthear. Lembrou que Martha um dia havia posto um ácido na limonada dos pais e que eles haviam ficado horas e horas recortando as fotos de dezenas de revistas. A mãe tinha virado budista depois. Lembrou do festival de Três Pontas. Alguém levara todas as roupas e os óculos de Martha e ela andando de pijamas, totalmente viajandona, sem seus óculos nem calcinhas por três dias. Tão linda até no terceiro dia de pijamas. 

Pablo sentiu uma dor de cabeça imensa. Pânico. Sozinho em casa, não sabia o nome de nenhum vizinho. A maior dor de cabeça que já tinha sentido em toda vida. Só podia ser o vírus, pensou. Não era. E não iria jamais saber o que era. Jamais era tempo demais. 

(Conto coletivo escrito por Ana Calomeni, Camilla Agustini, Igor Dias, Cynthia Dornelles, Carmen Molinari, Guilherme Preger, João Mattos, Walter Macedo, Rosa Correia, Ludmila Abramenko, José Petrola e Daniela Ribeiro. Mote para o encontro de 09/03/2021). 


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