Sobre a Inexistência de Deus, por Guilherme Preger

 

Sobre a inexistência de Deus


Estudei em colégio jesuíta. E lá me ensinaram que Deus existe e está provado.

Há várias provas da existência divina. A que eu mais gosto é a de Santo Anselmo. É possível pensar num Ser absolutamente superior. Nada existiria acima desse Ser em qualquer qualidade. Mas há uma contradição nesse pensamento. Pois ao Ser absolutamente superior pensado faltaria ainda uma qualidade para sua perfeição e suprema magnitude. Ele seria apenas pensado e, portanto, inexistente. Para resolver essa contradição é preciso pensar num Ser rigorosamente semelhante a esse Ser superior pensado em todas as suas qualidades e a Ele acrescentar a qualidade da existência. Então teríamos um Ser superior que além de pensado, seria existente. Tal Ser é Deus.

Sempre achei a prova de Santo Anselmo impecável, mas ao mesmo tempo, assim como na contradição do Ser superior pensado, acredito que falta à prova algum detalhe que nunca consegui encontrar.

Por isso, me dediquei a uma prova mais simples quando eu era adolescente. Resolvi pedir a Deus uma namorada. Se a namorada viesse é porque Deus existe. Mas a namorada não veio.

Resolvi dar uma chance a Deus: não é que ele não exista. Talvez ele seja apenas surdo e não tenha escutado meu apelo. Talvez um simples pedido não seja suficiente para Deus ouvir. Como diriam os jesuítas antigos de Port Royal (onde estudou Pascal, que também provou que Deus existe usando a matemática), é preciso também uma Prova de Amor.

Então me apaixonei por uma moça. Perdidamente. Assombrosamente. E fiz de tudo para expressar minha paixão. Envei bilhetes, escrevi poemas, me declarei em plena praça da universidade (já tinha passado o tempo de colégio) para uma multidão. E nada de ela vir ao meu encontro.

Meu ato definitivo foi quando resolvi escrever em sua rua, em letras imensas, um grafite declarando meu louco amor. Comprei um spray e de madrugada me dirigi à rua dela. No entanto, no exato momento em que comecei a escrever a mensagem de amor, uma viatura da polícia apareceu, vinda de não sei onde. Os policiais saltaram do carro, rolando no chão e me apontando suas armas. “Mãos na cabeça! Ajoelhe-se”. Pasmo, me ajoelhei e estendi o spray em direção aos policiais. Eles pegaram o spray e o examinaram. Abriram minha mochila e a revistaram. Havia apenas uma agenda lá dentro, onde estavam anotados alguns versos e fórmulas matemáticas (eu estudava engenharia). E havia também uma caneta que meu pai havia me dado. Eles não sabiam como abrir a caneta e eu tive que lhes explicar. Então viram meus braços, para saber se havia marca de picadas. “O que você está fazendo aqui, seu maluco?”. Contei-lhes a verdade. Que estava apaixonado e que ia escrever uma mensagem de amor. “Você é louco?”, eles indagaram. Então me deixaram, confiscando o spray, e antes de irem embora um deles me disse: “Procure outra garota. Há muitas por aí”.

E assim terminou meus dias de grafiteiro e de fé. Os jesuítas tinham razão. Toda paixão é uma mensagem para Deus. Mas a garota não me amava e Deus não existia.

Algum escritor já disse que se Deus não existe, tudo é possível. No meu caso, foi efetivamente o que aconteceu. A paixão acabou porque não correspondida por Deus e pela garota, e eu nunca mais me apaixonei. Seguindo a orientação do policial que me abordou, um verdadeiro mensageiro divino, tive muitos amores. Me casei, tive filhos. Me separei, me casei de novo, tive outros amores, e assim por diante. Deus não existe e é possível amar os outros e ser amado.

No entanto, surgiu essa diabólica pandemia que é um verdadeiro pandemônio. E me guardei em casa, longe dos amores e das amizades, escrevendo poemas e ensaios que ninguém mais lê. Não vou a bares nem a cinemas, não encontro ninguém além de minha incontornável solidão. Vivo essa vida espectral de imagens nas redes sociais, que não passam de bits virtuais, pontos adimensionais, poeira digital.

E concluo que a pandemia é a prova definitiva que Deus não existe, mas isso é trivial, fácil de se levar e continuar na estrada. Mais difícil é entender que tampouco eu existo.

(conto escrito para o encontro de 09/02/2021)

Guilherme Preger é um escritor que não existe.

 

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Vamos comprar um poeta, por Afonso Cruz

Homens não choram

Cultura: uma visão antropológica, de Sidney W. Mintz