S.B. no photoshop, por Guilherme Preger

Estou indignado. Conheço um pouco da vida.  Nasci no Bronx, percorri todas as ruas de Chicago, fotografei a máfia, mas há certas coisas que não podemos admitir. Esta notí­cia abalou Paris, de Montmartre ao Quartier Latin, dos Campos Elí­seos às Tulherias. E pelos motivos errados. Eles e elas não sabem de nada. Eu sei porque estava lá.

Fotografei todos os famosos, as mais célebres personagens do século XX, mas nenhum astro se compara ao escritor N.A. Mulherengo, boêmio, talentoso, o que importa que não seja hoje considerado um dos grandes artistas do século passado? Que importa que seu nome não seja verbete de enciclopédia? Que importa que poucos saibam que ele influenciou um famoso cantor de rock com seu grande romance “Walk on the wild side”?

N.A era um verdadeiro “Mandarim”, como chamava sua amante S.B., famosa intelectual francesa. Acho que a paixão ”sincera, emotiva” de S. por N. era apenas mais um exemplo do velho, inabalável e inconfesso fascí­nio que os americanos despertam nas francesas, em especial se elas são intelectuais e, mais ainda, se são casadas. Nas viagens dela aos Estados Unidos, o casal viveu tórridos romances.

Éramos amigos, a tal ponto que me fez (ou me impôs) um pedido especialí­ssimo que só grandes amigos poderiam se comprometer. Queria que eu emprestasse meu apartamento para que sua amante pudesse se lavar após o ato amoroso. Pobre N.A, seu apartamento alugado em um bairro mal afamado de Chicago para seus apaixonados encontros naqueles idos de 1949 não tinha sequer chuveiro. Relutei em aceitar tal extravagante solicitação, mas A. me deu a decisiva motivação. Sua amante gostava de homens jovens e não costumava nunca fechar a porta do banheiro durante sua toilette.

C'est comme ça. Lá estava a, naquele tempo, não tão famosa intelectual S.B., casada com um importante e compreensivo intelectual das altas rodas filosóficas parisienses, lavando-se em meu modesto apartamento. Tal como meu amigo havia prevenido, deixara a porta aberta. Eu era apenas um desconhecido estagiário da revista Life e por nada deste mundo largava minha fiel Leica. E, diante de tão inusitada oportunidade, fiz o que todo fotógrafo faria. Cliquei.

S.B. ouviu o ruí­do do obturador, mas sem interromper seu ritual í­ntimo, disse apenas “Villain garçon”. E permaneceu imperturbável em seu exercí­cio higiênico, sem fechar a porta do banheiro. Cliquei mais.

Ela tinha então 44 anos. Estava no esplendor de sua feminilidade. Nunca entendi porque seu marido a chamava de “Castor”. Vocês podem não acreditar, mas era uma fêmea, uma leoa, cuja carne sensual repartia generosamente com dezenas de amantes, e entre todos, o maior, meu grande amigo escritor. Talvez ela me tenha feito ver que a monogamia de uma mulher bonita não passa de um ato imperdoável de egoí­smo e avareza.

De seu banho em meu apartamento guardei uma única foto, como a prova de um crime – l'objet du delit – sem remissão. A porta do banheiro está aberta de onde se vê S.B. de costas, nua, prendendo seu cabelo. Seu maravilhoso derrière aparece iluminado como o centro de gravidade da imagem, magnetizando o olhar do voyer, as ancas largas de fêmea feita sustentadas pelas pernas firmes como mármores e estas sobre o detalhe do sapato de salto "ó as francesas, como têm classe nuas!".  A espinha correndo retilí­nea entre as espáduas dilatadas, os braços abertos atrás da nuca, as mãos em tesoura sobre os cabelos. Um dos braços está impedindo a nossa visão da face no espelho, que reflete apenas seus cachos morenos. Quem jamais adivinharia S.B. nesta imagem? Como naqueles quadros de Magritte de personagens sem rosto, ali está a Mulher, o Eterno Espí­rito Feminino encarnado, a imagem translúcida da Fêmea que só nos aparece em sua verdade quando a vemos desprevenidas e nuas. E o décor? O studium do banheiro como moldura perfeita, a pia, o vaso, a banheira, o rolo de papel higiênico, que maravilhoso fundo a compor um cenário do qual emerge a carne espessa do ser feminino.

A minha foto mais bela, mas nunca pensei em exibi-la. Já fotografei gente de Chicago todo o jeito, momentos de vidas raptados em frames impossí­veis, que nós fotógrafos captamos num instante único, misto de acaso e necessidade, no qual pouco interferimos. Nesta foto, a lâmpada de cima do espelho projeta em S.B. um cone de luz transfigurando sua pele branca, destacando-a do fundo mais óbvio e vulgar - um banheiro!- do cotidiano para a eternidade etérea, como numa pintura de Manet.

Minha lealdade me fez um amigo í­ntimo do casal em seus mais de 20 anos de relacionamento, mas talvez, arrependido de ter me aproveitado de um momento de beatí­fica cumplicidade (e quando um homem é mais cúmplice de uma mulher se não ao acompanhá-la silenciosamente em sua toilette?), deixei a máquina de lado em um idí­lico encontro a trois na casa de praia de meu amigo. Permanecí­amos nus, à  sombra de um sol magní­fico, brindando a presença do mar e o laço da amizade. Não guardei registro daquele momento mágico. E agora, ao contrário da canção, Oui je regrette tout… Mas pensando bem, e se as fotos nunca tiradas tivessem tido este mesmo ridí­culo destino?
Sim, eu fui paparazzi. Confesso que ajudei a criar esta praga que hoje assola a intimidade dos astros. Tenho parcela de culpa, eu reconheço, mas aquela foto de S.B. nua em meu banheiro mantive escondida como secreto e precioso tesouro. Até que uma inundação em minha casa em Illinois levou-me os negativos zelosamente guardados e para minha consternação a foto começou a correr o mundo através deste monstruoso octopus digital ramificado pelo planeta todo.

E eis que agora um semanário de respeito francês, à  gauche, publica, sem autorização, minha foto de S.B. em sua capa frontal. As feministas, como sempre, espernearam dizendo que não passava de mais uma exploração machista do corpo feminino através de uma foto ilí­cita e não consentida. Algumas tiveram, pelo menos, humor suficiente - mesmo que raivoso – para perguntar que, se a foto fosse da enorme bunda de seu marido estrábico, eles a teriam publicado do mesmo jeito. O que me chateou foi a insinuação de que teria me aproveitado da intimidade de S.B..  Essas feministas não entendem mesmo o que é uma bela vista do corpo mulheril. S.B. estava lisonjeada – ela sabia, compreendia, aceitava. As feministas nem imaginam que quando ela publicou seu livro de memórias, revelou detalhes de sua vida amorosa sem o consentimento de seu amante e meu amigo.

E, no entanto, as feministas têm razão, mas pelo motivo errado. Também fiquei chocado pela foto, e não porque não foi autorizada (não me sinto dono de minhas fotografias). Eles mexeram na foto. Retocaram-na. Comparando com a original, podemos ver como os braços foram aclarados, tornando-se mais fluidos, como a parte superior foi iluminada para jogar a parte inferior na penumbra, como rugas, manchas e sardas, ”esses detalhes que fazem a singularidade de um corpo amado”, simplesmente desapareceram. Emagreceram nitidamente sua própria silhueta, como numa lipoaspiração de seus quadris (esta sim não consentida). E pior, onde foram parar o vaso e o rolo de papel higiênico? Como se indicassem obscuras funções corporais indignas de uma famosa intelectual. Mas não 

são esses detalhes que a tornam mais humana e a fotografia mais sublime?

Ah os tempos atuais! Aproximo-me melancolicamente do tempo em que não será mais possí­vel clicar nenhuma imagem, pois todas já estarão eternamente congeladas. Velho, pelo menos meu corpo ainda o sinto, até demais. Nele residem mirí­ades de fantásticas memórias. Nele habitam ecos vivos das pessoas que fotografei. Em algum pedaço de minhas vértebras há uma recordação de meu amigo N.A. que nenhuma fotografia pode reproduzir. Em algum canto obscuro de minha carne repousa o sorriso maroto de S.B. nua ao se ver clicada. Que tristeza, minha amiga podia ter passado sem esta!

(Versão reconstituída do conto escrito em 2008 para o Clube da Leitura) 


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