Salvem as brincadeiras de rua!, por Luiz Antonio Simas

Salvem as brincadeiras de rua

Luiz Antonio Simas


O crescimento das cidades e o avanço da urbanização, com as decorrências desse processo, alteraram profundamente as maneiras como as crianças se divertem. A falta do espaço público para as brincadeiras infantis redefiniu com rapidez as maneiras de a molecada interagir, fabular, pular, dançar, correr e inventar o mundo.

Algumas brincadeiras do meu tempo de moleque sumiram do repertório de hoje. Eu adorava, por exemplo, rodar pneu. Uma criança era colocada dentro de uma roda de pneu grande, sem a câmara de ar; outra fazia a roda girar por uma vasta extensão. A sensação de desconforto causada pela posição do corpo em face ao movimento da roda (vez por outra alguém passava mal ou se esborrachava) era descontada pela excitação que o movimento arriscado gerava. Rodar pneu era adrenalina pura.

Pular carniça era outra estripulia que dependia de espaço, a começar pela corrida de média distância que definia quem seria o mestre e quem seria a vítima (o “carniça”) da ocasião. O carniça comia o pão que o diabo amassou. Ao comando de “simples, que a carniça é nova”, o pobre passaria a ser alvo das brincadeiras mais destrambelhadas. Dos vários comandos do jogo – gavião, tapar o fogareiro da velha, Corcovado sem cabeça, ver se na bica tem água, cartinha para a namorada, cemitério pegou fogo – inúmeros dependiam de um descampado para que a molecada se esbaldasse.

Afora essas, brincava também de chicotinho-queimado, bandeirinha, cabra-cega, finco, garrafão, dono da rua e uma quantidade impressionante de piques. Todas as atividades eram realizadas ao ar livre, em praças ou ruas com pouco movimento de carros.

Sou dos que acham que uma brincadeira que morre é uma catástrofe ecológica. A carniça é o mico-leão-dourado dos folguedos infantis. Por cultura, afinal, entendo o conjunto das maneiras peculiares que os povos criam para comer, rezar, dançar, trabalhar, lembrar os mortos, falar de brincadeiras e da história dos folguedos de rua.

Fico impressionado com a quantidade de crianças de hoje que mais parecem pequenos adultos; cheias de compromissos, horas marcadas, cursos, responsabilidades, pesos, dramas, estresses e ansiedades. Por isso bato nessa tecla.

Sou (para usar a expressão em voga) um ativista das brincadeiras, um ecologista dos folguedos. Um mundo em que os adultos perderam a capacidade de brincar é doente. Um mundo em que as crianças perderam a possibilidade de folgar na rua me parece infinitamente pior.


Simas, Luiz Antonio. Coisas Nossas. Rio de Janeiro: José Olympio, 2017.

(Mote lido por Camilla Agustini para o encontro de 23/03/2022)


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