A Velha Senhora, por Guilherme Preger

 

A Velha Senhora olhou os jovens mascarados pela janela de seu apartamento e pensou: “Covardes! Têm medo de morrer! Quem tem medo de morrer não está preparado para viver e sobreviver. Como eu. Eles acham que eu cheguei a noventa e quatro anos como? Com medo de morrer? Se tivesse medo, teria ficado pelo meio do caminho. Não teria tido filho. Não teria aguentado o divórcio. Não teria bancado minhas próprias contas. Não teria comprado este apartamento. Covardes!”.

Ela costumava a sair sem máscara para demonstrar seu desdém pelos medrosos. Quem tem medo de morrer acaba por se tornar escravo. Mas ela era uma Senhora. Ela mandava, nunca havia recebido ordens de ninguém, nem do Falecido. Os funcionários da Padaria reclamavam. “A Senhora não pode andar sem máscara, não!”. Queria ver que não a deixassem entrar. Sempre deixavam, pois aqueles servos eram interesseiros. Eram medrosos mas não rasgavam dinheiro. E comprava seus pães e o leite. E pagava com dinheiro. Sempre dava uma tossezinha para assustar os servos. A Velha Senhora era temida na vizinhança.

O Falecido era outro bundão. Por isso tinha morrido. Depois de ter sido depenado pela Prostituta. A Velha Senhora se lembrou então da Prostituta. Nunca mais tinha ouvido falar dela. Não deveria ter morrido, ou a teriam chamado para o inventário do apartamento do Falecido, pois sabia que não tinham tido filhos. Com medo de ter mais descendentes, pois era um covarde, o Falecido fizera vasectomia. Com a Prostituta ele não queria filhos, apenas sexo. Mas a Velha Senhora sabia que a Prostituta tinha outros amantes. Morreu cedo e corno. Não teve a menor compaixão pelo Falecido.

Então a Velha Senhora começou a se arrumar pois hoje almoçaria em casa com a Nora. Já eram dois meses que não a via. O Filho era um covarde. Dizia que não podia visitar sua mãe pois tinha medo de contaminá-la com o vírus. Mas a Velha Senhora sabia que ele saía para trabalhar todos os dias. Então ele mandava a Nora que não saía de casa pois dava aulas pela internet.

A Nora era educada e se fazia de simpática, mas era hipócrita. Somente uma mulher hipócrita teria se casado com seu Filho. A Nora se fazia de educada pois estava de olho naquele apartamento. Era por isso que ela aceitava romper o isolamento. O Filho era covarde e a Nora interesseira. A Velha Senhora não havia vivido noventa e quatro anos para não entender a situação. Eles a tratavam como se ela estivesse à beira do Alzeihmer. Mas ela se sentia absolutamente lúcida.

A Nora chegou na hora marcada, sempre pontual. Mulheres interesseiras são pontuais. Estava mascarada. Pensou em brincar, “você não precisa de máscara, pois Deus já te deu uma de nascença”, mas teve piedade da moça. Era feia. De máscara ficava melhor. Passava muitos cosméticos. Eles fediam. Pelo menos não precisava beijá-la. Mas mesmo assim, aproximou seus lábios da bochecha da Nora, que assustada revirou o rosto. “A Senhora precisa tomar cuidado! Acabo de chegar da rua!”. E a Velha Senhora deu um sorriso sarcástico.

O almoço transcorreu sem problemas. A Nora só falava no Neto, que agora tinha aulas pela internet. A Velha Senhora queria saber o que se aprende pela internet. Não se aprende aquilo que é mais importante: a enfrentar as dificuldades. A brigar com os inimigos. A reunir os amigos em confrarias para se proteger das ofensas do grupo adversário. A desafiar os professores para ganhar o respeito da turma. Enfim, estavam educando o Neto como um covarde iguais aos pais. A Nora dizia que ele agora só queria saber dos jogos de internet, que eles chamavam de “game”. “Que pena”, disse a Velha Senhora. “No meu tempo brincadeira era puxar o cabela das meninas que se achavam gostosas”. “Que isso - disse a Nora - Deus que me livre. Hoje não tem mais isso não”.

A sobremesa foi um pudim que a própria Velha Senhora fez. Mas na hora que o trouxe, deu outra tossezinha. Não revirou o rosto, nem escondeu a boca, pois as mãos estavam carregando a travessa do pudim. A Nora viu tudo e tentou disfarçar a cara horrorizada. “Com quantas máscaras se faz uma mulher”, pensou a Velha Senhora. Aquela Nora teria dado uma boa prostituta. Talvez até fosse uma, pois nunca entendera onde o Filho a havia encontrado. Mas a Velha Senhora não tinha nada contra as prostitutas. Em suas mais íntimas fantasias até desejava ter sido uma. Prostitutas também não têm medo. Só se tornam covardes depois que se casam.

Será que a Nora se recusaria a comer o pudim? Ela duvidava. O interesse era superior ao medo. Era isso que fazia da Nora uma verdadeira prostituta. No final, até gostava dela. Que tipo de prazeres uma mulher como aquela, cheia de máscaras, daria a um homem na cama? O casamento e os filhos estragavam as mulheres.

Como esperado, a Nora comeu o pudim e até o repetiu. Depois tomaram um café. A Nora então disse que aquela pandemia talvez tivesse sido um castigo. O Homem está destruindo a natureza”, falou. Mas a Velha Senhora respondeu: “Os homens e as mulheres”. Mas a Nora não entendeu o que ela quis dizer. Esse comentário encerrou a discussão e a Nora achou por bem se despedir. O Neto certamente já estaria sentindo falta dela. A Velha Senhora concordou. Esses homenzinhos são muito fracos. Aliás, sempre foram. O Falecido era um traste.

Depois que a Nora saiu, ligou a televisão. Era o jornal da tarde. Mais de um milhão de pessoas já haviam morrido no planeta pela pandemia. A Velha Senhora então pensou: “não tem nada a ver com Deus. Deus não existe. Isso é a melhoria da espécie”. E então sentiu um frio súbito. Foi buscar o casaco de lã.

A tosse sobre o pudim não havia sido proposital. Em verdade, se acentuou durante o resto da tarde. O frio também aumentou. À noite, o termômetro indicou 38 graus. Ela tinha sobrevivido à Grande Guerra. Foi dormir cedo, pois precisava recuperar as forças. Outra guerra se aproximava.

(Conto vencedor do encontro de 03/11/2020)


Guilherme Preger é um velho escritor do Rio de Janeiro





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