A Velha e a Santa, por Camilla Agostini


Henry havia chegado há pouco mais de uma semana em Santana da Piedade. Andava com a camiseta para fora das calças, imitando o jeito de vestir dos moradores daquele povoado de poucos habitantes, no Noroeste de Minas Gerais. Mas suas pernas compridas muito brancas, cabelos rubros e olhos como faróis denunciavam sua origem estrangeira, mesmo tendo aprendido a andar de chinelos. 

    Santana da Piedade era conhecida por suas formações rochosas cobertas por jardins naturais de bromélias gigantes e outras espécies raras. Para o processamento das amostras coletadas na região, o botânico reorganizou os móveis dentro do quarto da Pousada Rio Bonito. Levou a mesinha de madeira para próximo da luz natural que vinha da janela, ajudando nas análises com a lupa e as anotações. A luminária ao lado da cama foi posta no chão, permitindo o remanejamento da mesa de cabeceira para ser coberta por um veludo azul marinho, no improviso de um mini estúdio para registros fotográficos. A segunda cama de solteiro disponível no quarto havia sido encostada na parede e tinha sobre ela treliças para a desidratação das plantas, as amostras, embalagens, etiquetas, tudo na mais perfeita ordem.

O estrangeiro percorria os caminhos pelas montanhas com seus apetrechos e a ajuda de Romualdo, um menino que contratara como guia. Em um sábado, o tempo parecia instável, soprado pelo vento quente que anunciava chuva enquanto o céu cobria-se de branco. Henry não quis se demorar e levando capas de chuva passou na casa de Romualdo logo pela manhã, para partirem rumo às lapas de Santana. Romualdo não questionou, apenas sentenciou no seu silêncio de moço matuto:

– Vai chover. 

Henry com um português arrastado ponderou, justificou, lamentou, solicitou e, por fim, apenas disse:

– Então vamos sem demora. 

Romualdo cuspiu um bago da laranja que chupava, pegou um pedaço de pau que costumava levar em caminhadas e seguiu com o estrangeiro sem considerações.

Já passavam das duas horas da tarde quando a dupla de exploradores chegou a um conjunto de lapas e Romualdo indicou que conseguiriam água e local para pouso com a Velha Nha Zefa. Henry ficou surpreso ao saber que uma senhora morava sozinha naquelas alturas, dentro de um abrigo rochoso. Instigado com o caso quase se esqueceu de sua busca botânica.

Romualdo pediu para que o gajo aguardasse enquanto iria averiguar com Nha Zefa o pouso. O rapaz sumiu por entre duas grandes rochas em uma fenda escura que era como uma porta. Pouco depois saiu de lá, acompanhado de uma senhora bem pequena, puxando uma das pernas, com os cabelos grisalhos soltos sem cerimônias e um capote escuro muito gasto que lhe cobria o corpo pesado da vida naquelas lonjuras. A velha os convidou para entrar, onde o fogo estava aceso com alguns palmitos assando, junto à carne de uma pequena caça. A velha ofereceu um chá quente de ervas que esquentava o corpo e fazia os mosquitos se afastarem pelo gosto que deixava no sangue.

Nha Zefa quis saber a razão das buscas do estrangeiro e não compreendeu para que levar as plantas se não iria fazer uso delas. Henry não compreendia como ela podia viver sem ninguém naquelas alturas e perguntou se não era perigoso. Ela riu. Disse que o perigo espreitava a vida de uma velha como ela nos arredores da cidade, gente ruim lá não faltava e completou:

– Mais adiante, em outra lapa, vive Joana. Uma mulher com seus dois filhos que nasceram aleijões, não podem trabalhar. Aqui podemos cuidar deles. Em um grande salão depois do Rio Bonito vive Cleonice com doze meninas. Lá só chega quem sabe o caminho. Aqui, mais adiante um pouco, tem uma baixada de xuxu, com umas mandiocas e bananeiras que o Tião Caolho cuida. De maneira que não estamos sós nesses rincões, seu moço. Mais importante, temos ainda Nossa Senhora de Santana. Se a senhoria tiver sorte, subindo o rio vai encontrar o rochedo ou ele encontra a senhoria. 

A velha então riu como se guardasse um segredo. Romualdo no seu silêncio habitual sabia que apenas deveria ficar quieto na presença de Nha Zefa.

Henry fascinado pela vida na montanha, para além das que podia desidratar e levar para a Suécia, deixou de lado as bromélias e seguiu córrego a cima, junto com Romulado nas últimas horas do dia, à procura do rochedo de Santana indicado pela Velha Zefa. Não havia qualquer razão para aquela busca, dela ele não levaria nada, era movido apenas por um encanto. Um fascínio em conhecer aquele lugar sagrado para os moradores das lapas de Santana da Piedade.

Caminharam rio a cima por cerca de quarenta minutos, encontrando no caminho marcos na paisagem indicados pela velha, sempre atentos para um grande rochedo muito claro, quase branco, em formato triangular à semelhança de uma imagem de Nossa Senhora vestida em seu manto, com forma semelhante na posição de suas mãos, como se estivessem em prece.

Até que em certo momento o sol cortou a mata densa que beirava o riacho. Henry impactado pelo deslumbre da cena, um pouco cegado pelo feixe, buscou de volta o sentido da visão, apoiando-se nas rochas maiores à sua frente. Quando novamente recobrou os sentidos estava de pé majestoso diante de si o rochedo de Santana iluminado pelo sol. Romualdo ao seu lado saiu do seu silêncio sempre calado e ciciou surpresa e susto.

Henry tocado de uma emoção que não conhecia e tampouco sabia de onde vinha, escorando-se nas pedras, agachou-se nas águas do córrego e puxando o rapaz pela camisa, murmurou: 

– Você está vendo Romulado?... 

O menino com os olhos paralisados de susto, agarrou a própria camisa como quem quisesse fugir dali antes que findasse o milagre: a imagem de Santana se movera em plena rocha, entendendo seus braços como quem os chamasse para conversar.

Camilla Agostini é carioca, professora, arqueóloga e historiadora na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Participa das reuniões do Clube da Leitura desde janeiro de 2017.

Este texto tem como base pesquisas sobre comunidades que vivem e áreas de difícil acesso, com referenciais religiosos associados a formações rochosas em suas proximidades, tal como foram as histórias compartilhadas em trabalhos de campo com Carlos Magno Guimarães e Suzana Corrêa em diferentes regiões de Minas Gerais e como trata o artigo Agostini, Camilla. Entre senzalas e quilombos: “comunidades do mato” em Vassouras do oitocentos. In: Arqueologia da Sociedade Moderna na América do Sul. A.Zarankin e M.X.Senatore (org.). Ed. del tridente, 2002.


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