O óbvio Ululante, por Nelson Rodrigues

Certa vez, um erudito resolveu fazer ironia comigo. Perguntou-me: ‘O
que é que você leu?’. Respondi: ‘Dostoiévski’. Ele queria me atirar na
cara os seus quarenta mil volumes. Insistiu: ‘Que mais?’. E eu:
‘Dostoiévski’. Teimou: ‘Só?’. Repeti: ‘Dostoiévski’. O sujeito,
aturdido pelos seus quarenta mil volumes, não entendeu nada. Mas eis o
que eu queria dizer: pode-se viver para um único livro de Dostoiévski.
Ou uma única peça de Shakespeare. Ou um único poema não sei de quem. O
mesmo livro é um na véspera e outro no dia seguinte. Pode haver um
tédio na primeira leitura. Nada, porém, mais denso, mais fascinante,
mais novo, mais abismal do que a releitura. (Divaguei demais e
desculpem). De Dostoievski passo à minha infância. Há bastante de
Dostoievski, bastante de Dickens, na rua Alegre, em Aldeia Campista.
Não será a pura semelhança episódica. Não. É uma semelhança, digamos
assim, de atmosfera. Sinto que parte da minha infância está inserida,
difusa, volatizada, em certas páginas ou de Dickens ou Dostoievski.
Por exemplo: – eu poderia fazer, com a minha passagem pela escola
pública, uma antologia de humilhações. (Está comigo, enterrado em mim,
um perene menino humilhado.)

(Mote lido por Walter Macedo para o encontro de 30/06/2020)





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