O Haiti Aqui, por Guilherme Preger

Quando chegou de ônibus a Brasília ele se lembrou daquela canção que o Djavan cantava. O céu azul e o laço do infinito sobre o traço do arquiteto.


Djavan, cantor preto. Ele gostava dele desde que chegou ao Brasil. Mas diziam que ele apoiava o Coiso. Eu prefiro acreditar que não, pensou. Djavan está sendo ambíguo. É uma tática que nós homens pretos usamos para nos defender. E mesmo seu pensamento soava com certo sotaque.


Por que ele tinha vindo ao Brasil? Sim, havia nisso uma fantasia. Os hatianos imaginavam o Brasil como uma terra da alegria. Torciam para a seleção brasileira em copas do mundo.


Quando chegou ao Brasil a primeira coisa que fez, ainda no aeroporto, foi comprar uma camisa oficial da seleção brasileira. Queria sair na rua a utilizando. Mas logo viu que isso seria impossível. Reparou imediatamente no mal estar que causava. Estão tendo preconceitos porque um homem preto está usando a camisa brasileira, a “amarelinha”? Como isso era possível no país de Pelé? No início não entendia. Ficava perplexo. Porém, depois entendeu.


Era 2018, um dos anos mais violentos da história brasileira. Ele chegou um pouco antes do carnaval. Primeiro visitou Salvador e curtiu a temporada pré-carnavalesca. A capital soteropolitana era uma espécie de Caribe feliz. Correspondia perfeitamente às suas expectativas mais imaginárias. Era a fantasia encarnada em cores e ritmo. Ficou encantado com o batuque nas ladeiras do Pelourinho. A qualquer hora do dia e da noite havia bandas passando. Ficou impressionado com a quantidade de igrejas. Disseram-lhe que havia uma para cada dia do ano. Tomou banho nas praias limpas da Baía de Todos os Santos. Sim, Salvador era o Porto Príncipe da Alegria.


Depois foi para o Rio de Janeiro para curtir os dias de carnaval pois queria ver as Escolas de Samba. Ficou na casa de um amigo que conhecera em seu país natal e que participara da campanha de Paz da ONU, a Minustah. O nome dele era Heitor e morava no Morro da Providência, no centro da cidade. Na época, era cabo do exército. Ele havia participado do chamado “massacre da Cité Soleil”, expedição das tropas brasileiras chefiadas pelo general Augusto Heleno. A operação brasileira havia sido tão sanguinária que o general teve que deixar o país a pedidos da própria ONU. Os brasileiros que eram amados no Haiti passaram a ser odiados pelo povo.


Foi Heitor que preservou o respeito que ele ainda tinha pelo país tropical. Heitor era preto, gostava de samba e no Rio de Janeiro era músico oficial da escola Estácio de Sá, onde também havia morado. Em Porto Príncipe saíam juntos para dançar Cumbia e Reggaeton. Heitor lhe ensinou como tocar na percussão os toques de samba e até alguns pontos de candomblé. No Haiti também tinham santería.


Heitor havia retornado traumatizado do massacre da Cité Soleil. Foi quando deixou o país devido a problemas de ansiedade, pressão alta e arritmia cardíaca. Antes de sair, fez questão de se despedir e oferecer sua casa no Rio de Janeiro para alguma oportunidade. E pediu desculpas. Sim, pediu desculpas pelo massacre. Disse que não havia participado de nada e que, ao ver no que tinha se degenerado a operação, com execuções que ele já conhecia das favelas do Rio tinha simplesmente se tornado incapacitado de carregar uma arma. Ao voltar ao Brasil abandonou as forças armadas, tentou o ENEM e entrou na universidade, onde se formou em Direito. Hoje mantinha um escritório no Centro, perto de onde morava e atendia os vizinhos do morro de graça.


Foi Heitor que salvou o Brasil aos seus olhos. Mas uma mágoa muito grande lhe ficara, a ele o hatiano. Em Porto Príncipe também era um dos poucos universitários. Fazia sociologia e sua tese era justamente sobre as consequências pós-traumáticas daquele massacre brasileiro e a degradação da estima que os hatianos tinham pelo Brasil, antes e depois do massacre. Agora iria fazer o doutorado no Brasil, continuando sua pesquisa sobre o exército brasileiro e suas relações históricas com a cultura africana e preta. Ele tomava o romance Memórias de um Sargento de Milícias como mote da tese para entender a formação das polícias.


O carnaval foi ótimo e Heitor estava genuinamente feliz por revê-lo. Foram a muitos blocos. Ele viu a Estácio passar no Grupo de Acesso. E na noite principal viram os fantoches sobre patos amarelos e a imagem do “Presidente Vampirão”.


E poucos dias depois o Presidente decretou a intervenção militar no Rio de Janeiro. E alguns dias mais tarde Marielle foi assassinada pelas imediações do estácio, na mesma noite quando ele fora beber por lá com Heitor e seus velhos amigos. Havia sido uma noite ótima e a morte de Marielle, uma belíssima mulher preta, com o porte de uma Rainha Africana, ou de uma deusa da Santería, era como o primeiro tremor que sentira em Porto Príncipe no dia do terremoto.


Ele acompanhou no Brasil toda a campanha presidencial brasileira. Depois da prisão de Lula, que seus amigos brasileiros, inclusive Heitor, consideravam o melhor presidente brasileiro de todos os tempos, ele teve certeza absoluta que o Coiso ganharia, apesar do ceticismo inicial de Heitor e de seus amigos do samba.


E teve afinal a facada de Adélio, pobre homem preto como ele. Pobres e pretos e pretos e pobres como na canção Haiti de Gilberto Gil e Caetano Veloso. A facada não havia sido fatal. Teria Adélio agido sozinho? Teria sido realmente uma facada, ou um teatro armado? Todos suspeitavam de Adélio, de que ele não era louco e que agira a mando de alguém. Na cabeça dos homens brancos, homens pretos sempre obedecem ordens.


E agora chegava a vez dele. Enquanto ia para a pensão que reservara em Brasília ele pensara: eu sou o novo Adélio. Mas não irei falhar. Ele viera na capital brasileira com a desculpa de fazer pesquisa. Isso era verdade. Mas viera também vingar todas aquelas mortes covardes em Porto Príncipe.

Não lhe interessava o ridículo General Heleno, que havia sido o primeiro alvo escolhido. Mudou de ideia enquanto planejava a ação. Iria direto ao Coiso.


E ao contrário de Adélio não iria falhar. Seu golpe seria preciso, perfeito, como o de um samurai. Um samurai preto. Caribenho.


Mas ele não estava ali em seu nome. Estava em nome dos haitianos de Cité Soleil. Estava em nome dos amigos baianos felizes mergulhando nas águas da Baía e tocando tambor. Estava ali em nome de seu amigo Heitor que o recebera com tanta hospitalidade. Estava em nome de Marielle. Até mesmo em nome de Adélio. O gesto exato e o golpe preciso. Xamânico. Traço do arquiteto. Minha linha do equador, esse imenso desmedido amor.


Acabou. Você não é Presidente Mais.


Guilherme Preger é escritor de verdade 


(Conto lido no encontro de 16/06/2020)

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