No Tempo das catástrofes, por Isabelle Stengers

A alegria, escreveu Espinosa, é o que traduz um aumento da potência de agir, ou seja, também de pensar e de imaginar, e ela tem algo a ver com um saber, mas um saber que não é de ordem teórica, pois não designa a princípio um objeto, mas o próprio modo de existência daquele que se torna capaz de sentir alegria. A alegria, poderíamos dizer, é a assinatura do acontecimento por excelência, a produção-descoberta de um novo grau de liberdade, conferindo à vida uma dimensão complementar, modificando assim as relações entre as dimensões já habitadas. Alegria do primeiro passo, mesmo inquieto. E a alegria, por outro lado, tem uma potência epidêmica. É o que mostram tantos anônimos que, como eu, sentiram essa alegria em maio de 1968, antes de os responsáveis, porta-vozes de imperativos abstratos, se apoderarem do acontecimento. A alegria é transmitida de alguém que sabe a alguém que é ignorante, mas de um modo em si mesmo ´produtor da igualdade, alegria de pensar e de imaginar juntos, com os outros, graças aos outros. Ela é o que me faz apostar em um futuro em que a resposta a Gaia não seria o triste decrescimento, e sim o que os objetores de crescimento já inventam quando descobrem juntos as dimensões da vida que foram anestesiadas, desonradas em nome de um progresso hoje reduzido ao imperativo do crescimento. Talvez, finalmente, ela seja o que pode desmoralizar nossos responsáveis, levá-los a abandonar sua triste pose heróica e a trair o que os aprisionou.


STENGERS, Isabelle. No Tempo das Catástrofes. São Paulo: Cosac Naify, 2015, p. 152. 

(Mote lido por Guilherme Preger para o encontro de 16/06/2020)










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