Enquanto os dentes, por Carlos Eduardo Pereira


Havia muitas brincadeiras de garoto, guerra de amêndoa, golzinho, pipa, taco, rolimã, cuspe a distância, e Antônio era um desastre em todas elas. Mas em corrida de chapinha ele se destacava. Era o responsável por desenhar as pistas, reproduções dos circuitos que ele conhecia tão bem. Desenhava na calçada irregular, não exatamente como eram, mas simulando florestas e pontes, riscando o chão às vezes com tocos de giz, quase sempre com pedaços de tijolo. Tinha jeito para desenho e talento para atividades manuais em geral, era o que diziam. A mãe guardava as tampinhas das garrafas de cerveja ou do refrigerante de domingo e Antônio separava as mais lisinhas, as que não tinham sido deformadas pelo abridor, para usar nas competições. Com o tempo, desenvolveu técnicas para incrementar seus automóveis imaginários, testando materiais, derretendo cera de vela na parte de dentro das chapinhas, misturando tintas, cores as mais variadas, proporcionando estabilidade, e beleza, aos petelecos. Mas teve essa vez que Antônio inventou de comentar sobre o Piquet. Encheu a boca para repetir o que ouvia em casa: que o cara era um tremendo garanhão, que não perdoava mulher boa que encontrasse pela frente, que ele comia tudo que era modelo, ou namorada, ou mesmo esposa de colega. O Piquet tinha desses direitos, era campeão do mundo, o mais antigo da categoria. E se algum infeliz resolvesse encrencar, ainda por cima apanhava. Como na vez em que ele encheu de pancada o Nigel Mansell, com capacete e tudo. Falou isso de um jeito que era - e ao mesmo tempo não era - o do Comandante. A rua inteira olhando para Antônio. E a coisa piorou com ele se empolgando ao falar das cores da equipe: que o preto da escuderia não era exatamente preto, que era um outro matiz (foi essa a palavra que ele usou, matiz), que estava mais para o grafite. De repente os garotos, os pais dos garotos, todo mundo começou a gargalhar, só umas mães que não. Apontavam para ele, gritando e fazendo sinais obscenos. Quem já tinha pentelhos arriava a frente dos shorts para mostrar. Um dos pivetes escarrou na camiseta dele. Identificaram que a sua tevê não era colorida, já que o matiz (eles repetiam, imitando uma vozinha fina), o matiz da escuderia era azul, e não grafite. Antônio correu para casa e apanhou como o diabo. O Comandante enquanto batia reforçava que era para Antônio aprender. Que era para demonstrar como ele tinha que ter feito com eles todos.

Enquanto os dentes: Carlos Eduardo Pereira, Rio de Janeiro, Todavia, 2017. p. 13-4.


Carlos Eduardo Pereira nasceu no Rio de Janeiro em 1973. Enquanto os dentes é seu primeiro romance.
Fonte: Orelha do próprio livro


Mote lido por André Salviano para o encontro do dia 14 de maio de 2019


                                                                                                 

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