Aristeu, por João Mattos
Aristeu, no
primeiro dia de aula. Aristeu, companheiro de carteira escolar, com dificuldade
de pegar no lápis. Para mim era fácil, vinha de uma casa de professora, tinha
lápis de cor, papel e cartolina, giz de cera à vontade. "Mas essa gente é
muito bronca", dizia minha mãe.
E
teve o dia de fazer a primeira cópia. A história de Oscar, seu barco e seu
cãozinho. Da lousa para o caderno, capricho e atenção. Eu terminei, os colegas
terminaram. Aristeu, com seus garranchos, nunca chegava. "Muito devagar,
muito devagar!", censurou a professora. Aristeu ria, um riso sem graça.
A casa de Aristeu era lá pra baixo,
quase na beira do rio. Isso era recente, dois anos antes moravam na roça, no
bairro dos Sete Fogão. Minha mãe corrigia: "Sete Fogões". Mas não tinha
jeito não, o nome do lugar era Sete Fogão mesmo.
Aristeu e as brincadeiras no pátio. E na
volta da escola, passar pela praça, subir na mangueira, jogar pedras no
laguinho dos peixes. Aristeu era danado. Empinando papagaio, dirigindo, com uma
varinha de ferro, uma roda velha de carrinho de mão.
O pai, Galdino, só tinha trabalho
durante seis meses. No resto do ano, fazia pequenos biscates. Mas quando estava
no tempo da safra, saía cedinho, com o corote de água, a marmita embrulhada, o
foião de cortar cana. O corpo todo coberto com panos, na cabeça um chapelão de
palha, parecia um fantasma. Os cortadores de cana eram assim, fantasmas subindo
no caminhão no claro-escuro da madrugada, indo para a plantação, encobertos
para escapar do sol e dos espinhos da cana, o terrível joçá. A mãe lavava roupa pra
fora, e uma das tarefas de Aristeu era entregar a roupa lavada na casa das
freguesas de Dona Eleutéria. Eu às vezes ia junto, aquele cheiro bom de roupa
limpa enrolada na trouxa de pano branco.
Fico tateando para contar esta história.
Não é nada do que parece. Não é a história do menino pobre e do menino rico que
ficaram amigos passando por cima das diferenças. Não foi assim. E a coisa
piorou a partir da adolescência. Por um motivo. Porque Aristeu era preto.
Porque Aristeu era preto, ele não podia
fazer as voltas no Jardim Central que todos os jovens brancos faziam, os
meninos girando num sentido, as meninas no outro. Era como se fosse o Tinder de
outros tempos. Se um casal desse match,
os dois iam para um banco lá dentro do Jardim, e o namoro começava.
Aristeu não. Porque Aristeu era preto. E
os pretos não ultrapassavam a cerca viva do Jardim, ficavam rodando do lado de
fora. Podia ser que Aristeu encontrasse uma moreninha, uma pretinha, uma patricinha como se dizia por lá, mas não
sei se ele encontrou.
Porque Aristeu era preto, ele não
entrava no Clube, e as matinês dançantes, os bailes de debutantes e o Carnaval,
tudo estava proibido para ele. Ele podia frequentar o Clube Vinte e Oito de
Setembro, próprio para pretos, onde parece que as festas eram bem animadas. Num
lugar meio tosco, mas diziam que os pretos eram felizes ali.
No Carnaval, os pretos saíam em belos
cortejos pelas ruas, nos chamados Cordões de Negros. Uma contagiante batucada,
cheia de sons, metais, madeiras. E o Rei e a Rainha, vestidos de cetim, coroas
de papelão dourado no alto da cabeça, cumprimentando o público com nobres
reverências. Uma vez o Aristeu foi o Rei. Aristeu com seu porte bonito, parecia
mesmo um rei africano, de Keto ou de Benguela. Ao lado dele, a Isaura, uma preta
garbosa. Aristeu e Isaura, fazendo evoluções nos velhos paralelepípedos das
ruas mal iluminadas de minha terra. Achavam que Aristeu iria se casar com
Isaura, mas isso não aconteceu.
Porque Aristeu era preto, não cortava o
cabelo na barbearia dos brancos. "O cabelo de preto estraga a
máquina", me explicou um dia Seu Antero, na Barbearia do Povo. Compreendi
então que aquela era a Barbearia do Povo Branco. Ele não me explicou se havia
máquinas especiais para cabelo pixaim, mas o fato é que Aristeu estava sempre
com cabelo bem raspado, apenas um topetinho no alto da testa, aquilo que se
chamava "corte alemão". Não sei se combinava, cabelo crespo com corte
alemão, mas era isso que Aristeu usava.
Porque Aristeu era preto, ele não
frequentava a nossa igreja. Os pretos tinham lá pra cima a Igreja de São Benedito,
onde rezavam para Santa Efigênia e Santo Elesbão. A mãe de Aristeu era da
Confraria do Rosário, exibia orgulhosa seu escapulário azul quando subia para a
Igreja, no domingo de manhã.
Depois que saí de minha terra, nunca
mais vi Aristeu. Eu estudei no Colégio, Aristeu começou um curso à noite, mas
abandonou porque tinha que trabalhar até tarde. Aristeu era preto.
Fui estudar Medicina, Aristeu ficou trabalhando
atrás do balcão da farmácia. Aristeu era preto.
Depois fui morar em Boston, Aristeu,
cheio de dívidas, parece que perdeu a casa dos pais e foi morar num arrabalde
pobre. Aristeu era preto.
Quando liguei para meus pais para contar
do nascimento do meu filho, soube que Aristeu estava preso, brigou no bar e
feriu um moço branco. Aristeu tinha dado pra beber, não parava em nenhum
emprego. Aristeu era preto.
Aristeu foi decaindo, decaindo. Passou a dormir num quartinho dos fundos da casa de Dona Faustina, que tinha pena dele. Morreu de pneumonia numa noite fria de junho. Não sei onde foi enterrado.
Aristeu era preto.
(Conto vencedor do encontro de 30/04/2019)
João Bastos de Mattos, nascido de Capivari-SP no inverno de 1952, é engenheiro eletrônico formado pelo ITA, mas tem dificuldades para trocar uma simples lâmpada. Trabalhou por mais de 30 anos na Petrobrás. É escritor diletante, tendo vencido por duas vezes o Concurso de Contos Petros.
Sofri muito lendo esse conto. Conheci Aristeu! Conheci aristeus e aristéias, na escola, nas ruas, na parte externa das praças. Poucos tiveram o clímax de ser rei ou rainha do cordão de negros, descendo a rua XV sob os olhares admirados de todos!
ResponderExcluirMas não eram negros; eram “de cor”. Não iam ao clube, não porque não podiam: preferiam o deles; assim também a igreja. Não completavam os estudos porque não se esforçavam: a escola, “risonha e franca” - e branca - era pública. E bebiam porque essa negadinha adora cachaça, tá no sangue!
Ótimo comentário, Virginia! Então você conheceu os Aristeus... Eram muitos, né?
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