Corpo tomado, por Leo Almeida



 Metástase, doutor? Foi o que me restou dizer, naquela tarde de chuva,  incrédulo, tentando esconder a expressão de pânico que queria irromper na minha cara. Sou um homem que não se mostra, em qualquer situação. Não sou de choro ou lamento, nunca fui de expor meu tutano. Sempre pelo avesso. O que importa, costurado por dentro; por fora, apenas o supérfluo. Consideram-me, por isso, um homem frio, objetivo. E sou. Mas essa notícia, dada assim, sem qualquer preliminar que arrefecesse o golpe, soou em mim como um estrondo incômodo. Guilhotina descendo num pescoço. Como assim, metástase? Repeti, quase me engasgando com a proparoxítona. Nossos últimos exames estavam tão promissores. Ou não estavam? Foi essa a tua avaliação, lembra? O médico, recostado numa cadeira de couro preto, olhou-me, creio que com pena. Virou o monitor na minha direção, para que eu pudesse conferir seu vaticínio. Mostrou-me na tela do computador umas manchas escuras nas imagens da ressonância que fizera a seu conselho, depois que uma dor muito forte no abdômen parecia apontar para algo pior. E era justamente esse algo pior que ele mostrava nas imagens trêmulas do monitor. Com o dedo na tela, seguia o rastro do tumor numa frieza tremenda, como um crítico de arte apontando as manchas escuras num quadro de Pollock. Não que eu estivesse esperando mimos por parte do Doutor Eurico, oncologista de muita e justa fama e que par e par com o talento médico corria sua franqueza absoluta no trato com os pacientes. As imagens são muito claras, Jorge, ele me disse, seu tumor espalhou-se, partiu do fígado e caminhou para outras partes do corpo. Meu tumor? Horrorizei-me com o possessivo. Meu? Continuou: Há esses pequenos nódulos nos rins e no pulmão. Vê? Ele apontava na tela. Olhe bem aqui essa manchinha na C1? É ele. Seu corpo está tomado por células de um carcinoma. Como lhe disse, em nossa primeira consulta, é um tipo muito agressivo de tumor. Lamento. Devo ter feito cara de esperança, pois ele emendou Não há muita coisa a se fazer. Quando a doença se alastra, como é o caso aqui, ficamos sem opções. Um corpo tomado pelo câncer carece de paliativos. Eu lamento mesmo.  Enquanto ele decretava a minha morte, fiquei pensando em minha vida. Durante anos lutei contra problemas de fígado, muito por conta dos abusos da adolescência, quando começou minha relação íntima com o álcool. Anos medidos em litros e porres abissais. Você puxou ao seu pai, dizia minha mãe enquanto eu vomitava no banheiro e ela gentilmente preparava o milionésimo chá de boldo para o filho alcóolatra. Meu casamento não resistiu à centésima caixa de uísque. Creio, hoje, que durou muito, fiquei no lucro. Os filhos não suportaram as cinco garrafas de absinto e os amigos – ah os amigos! – desapareceram quando começaram os primeiros sintomas da doença: os tremores. Mesmo depois que parei de beber, não voltaram: nem mulher, nem filhos, nem amigos. Foram-se os tremores, os porres, os inconvenientes, e ficou a solidão. Tremenda. Quando as dores no abdômen me levaram pela primeira vez ao Doutor Eurico, eu não fazia ideia do que estava por vir. O carcinoma obrigou-me a quinze terríveis sessões de quimioterapia e ao mergulho inexorável em minha vida. É curioso como a gente se percebe melhor quando uma tragédia se anuncia. É preciso a iminência do fim para que a gente se volte ao começo. Aquele papo clichê de que “um filme passou na minha frente” se  transforma em evento real e a gente se sente sozinho, na cadeira da frente do Cine Roxy da existência, assistindo a película de nossa parca diatribe existencial. Foi durante aqueles meses de vômitos e dores e perda de cabelo que comecei a perceber a desgraça que fui para aquelas pessoas muito próximas. Meus filhos, arredios, distantes, tinham toda razão de comportarem-se assim. Quem suporta um bêbado inconveniente desempenhando papéis humilhantes na escola, diante dos amigos? Mas isso só fui perceber quando a quinta injeção da quimio tomou meu sangue e invadiu meu corpo frágil por conta das quatro injeções anteriores. Meu corpo tomado de dores, tomado de drogas, tomado de medo calado, tomado de células cancerosas, tomado da mais terrível solidão e tudo isso silenciosamente, aos poucos, por partes, expulsando a vida ali, aqui, acolá, tomado, tomado, tomado, o corpo todo tomando...Doutor Eurico me alertara que durante o tratamento haveria o risco de contrair doenças oportunistas, pois um dos efeitos temíveis da quimioterapia era justamente a baixa de anticorpos. Resisti à todas as injeções, enfrentei com dignidade a décima quinta e entrei numa segunda fase de  medicamentos caros e muita náusea, além, é claro, de alguma esperança e sobressaltos.  Para minha felicidade, eu que me achava preso ao pesadelo, meus primeiros exames mostraram que o tumor regredira o suficiente para uma pequena cirurgia para extirpá-lo, que foi um sucesso. Senti-me curado e com aquela sensação maravilhosa de ter retomado meu corpo ao mal. Cheguei a ganhar corpo, botando mais oito quilos em minha carcaça, e cor, fiquei rosado, bochechas vermelhas no calor de Humaitá. Larguei definitivamente o cigarro e a bebida. Enveredei por um caminho até então desconhecido: decidira viver um pouco mais e melhor. Aproveitei a solidão para escrever um pouco - aforismos bestas, versos quebrados  e para resgatar as leituras que havia perdido. Não por acaso – nada é por acaso – agarrei-me à “A morte de Ivan Ilitch”.
...
As dores voltaram. A ressonância nas mãos do Doutor Eurico veio me dizer que perdi a batalha definitivamente. O inimigo, em metástase, tomou todo o território e, dentro em mim, desenha lentamente um cenário de terra arrasada, insistindo em doer e anunciar o fim. Despedi-me de Eurico com um abraço. No caminho para casa, decidi: vou comprar uma carteira de cigarros e, quando chegar, vou abrir um bom Sauvignon. Beberei até que o sono venha e, como uma espécie de condenado Hamlet, eu saboreie, por momentos, o esquecimento de tudo.

(Conto vencedor do encontro de 12/02/2019 sobre mote de Julio Cortazar)




Leonardo Almeida Filho (Campina Grande, 1960), professor universitário, escritor, reside em Brasília. Mestre em literatura brasileira pela Universidade de Brasília (2002), publicou, em 2008, o seu livro Graciliano Ramos e o mundo interior: o desvão imenso do espírito (EdUnB).  Alguns trabalhos publicados: O livro de Loraine (romance, 1998), logomaquia: um manefasto (híbrido, 2008); contos em Antologia do Conto Brasiliense (2004) e  Todas as gerações (2007) e pelo Prêmio SESC de contos Machado de Assis (2011); poesias em Poemas para Brasília (2004) e pelo Prêmio SESC de poesias Carlos Drummond de Andrade (2011). Publicou, com os professores Hermenegildo Bastos e Bel Brunacci, o livro Catálogo de benefícios: o significado de uma homenagem (Hinterlândia, 2010), que aborda o  cinqüentenário do escritor Graciliano Ramos. Publicou, pela Editora e-galaxia, Nebulosa fauna & outras histórias perversas (contos). Lança, pela Editora Patuá, o livro de poemas Babelical (2018).


Comentários

  1. Difícil ler sem se deixar envolver pelo drama descrito, sem se sentir o amigo que sumiu, ao se iniciarem os tremores...

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  2. Parabéns, caro amigo. Escrita crua, dramática... Transportei-me para o drama, os pensamentos de inútil arrependimento, ja que não se pode voltar atrás...

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