Crônica da casa esquartejada, por João Bastos de Mattos

CRÔNICA DA CASA ESQUARTEJADA

João Bastos de Mattos, 12/02/2019
Inspirado no conto Casa tomada, de Julio Cortázar


Já era um fato previsto, desde que se soube que uma tribo de bárbaros havia cruzado o Reno. Mas foi para nós uma surpresa quando a notícia chegou, dada a rapidez com que tudo ocorreu: nossa Horta havia sido invadida de madrugada por um exército de Suevos. Nada a fazer, disse Flamínio, o mais sensato dos irmãos, quando Cornélia, com o olhar desamparado, veio nos avisar.
A Horta já deixara há muito de ser uma horta, mas havia na família a mania de manter as denominações históricas. Ali era o lugar da fantasia, com circos mambembes montados pelos mais velhos, incendiando a imaginação dos pequenos, que sonhavam equilibristas com saltos mortais, homens do come-fogo, feras de terras longínquas obedecendo à voz do domador.
Não havia remédio, os Suevos que vinham das margens do Elba tinham escolhido justamente nossa Horta para armar suas tendas, amarrando varais nos galhos da jabuticabeira antiquíssima ou do cajueiro atingido outrora por um raio, mas que ainda mantinha sua altivez.
Sabíamos bem que agora os tempos eram outros, estava finda a Pax Romana, a morte de nossos pais e a vizinhança questionando os limites de nossa propriedade. Enfim, havia que conviver com os Suevos e aceitar que a Horta estava perdida.
Foi mais difícil quando se soube que os Alanos atravessavam a pinguela do Ribeirão do Carmo. Afinal, um povo que fugia das estepes da Cítia, assoladas pelos hunos, e tinha se associado aos povos germânicos na travessia do Reno – esse povo não iria se deter diante de uma simples pinguela num ribeirão que poderia ser cruzado a vau.
E foi assim que a família se viu, numa madrugada funesta, sem o Poço. O Poço que, sem água desde tempos imemoriais, era um lugar tão importante de reunião da família, onde se preparavam as laranjas para os famosos doces, onde se areavam os tachos de cobre e se debulhavam ervilhas. O poço em que um dia Túlio havia sido picado por um enxame de vespas, e onde Cornélia gostava de ensaiar Casa Destelhada para o concurso de declamação.
Não, não precisávamos do poço para as necessidades do dia a dia. Ficar confinado dentro de casa, porém, era muito incômodo para nós, ainda que pequenos pátios internos garantissem a luz e a ventilação. Lucrécia, a mais prática dentre nós, tratou de colocar vasos de flores nas janelas para nos alegrar.
A chegada dos vândalos, comandados pelo temerário Genserico, já não nos pegou de surpresa. Triste foi ficar sem a Cozinha, sem a mesa comprida, onde em outros tempos oito pessoas se sentavam para a sopa das noites de inverno. A Cozinha em que se preparavam os infindáveis pratos da consoada da noite de Natal  e o peixe das sextas-feiras da Quaresma. O encanto já não era o mesmo desde a partida de Túlio e Cecília – os Desertores, como a Mãe dizia, com voz travada pelo amargor. A morte dos pais tinha deixado aquela cozinha ainda mais triste, Lucrécia e Cornélia preparando as refeições, Flamínio e eu com o cuidado da louça e da limpeza do chão. Deixar a Casa é que não entrou, em tempo algum, nas cogitações de nós quatro.
"Nada de lamúrias", ordenou Lucrécia. "Podemos passar sem a cozinha". E providenciou um fogareiro para o preparo das refeições, num canto da sala. O único problema era que, sendo os pratos trazidos à mesa principal da casa, seria necessário usar no dia a dia as toalhas adamascadas dos jantares de cerimônia. Foi o que lembrou Cornélia, que se encarregou, ela mesma, do trato da guarnição de mesa: "Assim é melhor, fico mais tempo entretida, já que não posso mais cultivar os gladíolos e as papoulas da Horta".
Ainda que dolorosa, a ocupação da Sala pelos ostrogodos de Teodorico foi por nós sentida como uma etapa prevista na ordem natural das coisas, como se esse novo movimento se inserisse na harmonia das esferas celestes. De qualquer forma, a Sala dizia muito para nós todos, com a lembrança do Pai, depois do jantar, a bater a nata para fazer manteiga, e da Mãe a serzir as meias das crianças, enquanto ouvia no rádio um programa religioso.
Foi com a mesma sensação de inexorabilidade que nós, confinados na Biblioteca, tivemos notícia da chegada de Átila e sua horda de hunos – e da iminente invasão do último cômodo que nos restava. Era uma Biblioteca vasta, com pesadas estantes, livros encadernados em marroquim dourado e o diploma do Pai na parede principal. Não havia sido difícil nossa instalação naquela única peça da Casa, mas nos incomodava a sensação de estarmos conspurcando o templo da cultura com nossas comezinhas atividades cotidianas.
Enfim, tudo estava perdido. "Vamos sair dignamente, pelo portão do Jardim", comandou Flamínio, com seu pragmatismo costumeiro.
Naquele momento pensei, com íntima satisfação, que o último bastião de nossa fortaleza havia resistido a tudo, sendo necessária a chegada do Flagelo de Deus para nos derrotar definitivamente.
Não tivemos tempo para grandes despedidas. Lucrécia resolveu levar como recordação o balaio de
 costura da Mãe, eu optei pela bengala de castão prateado que  o Pai havia herdado do Avô. Cornélia, sempre romântica, apossou-se de um pequeno vaso de amores-perfeitos. Mas depois que todos saímos, Flamínio, que nada trazia consigo, declarou, fechando o portão com cadeado, que a Casa e seus objetos se casavam desde sempre, e que não seria ele a desfalcar um conjunto harmonioso. Então Cornélia depositou o pequeno vaso junto à mureta do jardim e, num gesto amplo, como se nos representasse a nós todos, disse adeus à Casa.


João Bastos de Mattos, nascido de Capivari-SP no inverno de 1952, é engenheiro eletrônico formado pelo ITA, mas tem dificuldades para trocar uma simples lâmpada. Trabalhou por mais de 30 anos na Petrobrás. É escritor diletante, tendo vencido por duas vezes o Concurso de Contos Petros.


Conto vice-campeão para o encontro de 12/02/2019

Inspirado no conto Casa tomada, de Julio Cortázar




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