A Triesfera, de Guilherme Preger
Quando
recebi o bip do novum informando que
a Tirania havia sido eleita, pensei: é preciso fugir. Mas não havia para onde.
Logo depois do novum,
recebi dois outros bips em sequência. Eram do contato afetivo. Eles vieram na
cor vermelha, de urgência.
As mensagens estavam escritas em nosso código de enlace.
Tive que usar o decriptador secreto. Ele estava escondido num arquivo opaco de
meu dispositivo virtual.
A primeira mensagem, em código hexadecimal (1578ACB745),
quando traduzida dizia: “Eureka”. A segunda dizia apenas um código numérico,
que não entendi.
Em seguida, mais um bip, que dizia: “SOS”. E então achei
que deveria visitá-lo imediatamente.
Foi isso que me fez pegar o trem de superfluidos e, em duas
horas, após a imersão ctônica, sair precisamente em frente a sua porta. Que
estava trancada.
Apertei o bip de chegada e enviei várias mensagens. Mas
não tive resposta. Foi quando me dei conta que o código numérico enviado era a
chave da porta, o que se mostrou verdadeiro. A porta abriu e se fechou atrás de
mim.
No interior do aparelho doméstico reinava a mais estrita
ordem. Nada parecia estar fora do lugar, conforme minha última visita. Mas não
havia sinal de meu contato afetivo.
O que pode estar embaralhado nesse aparelho? Eu precisava
responder essa pergunta, pois, na certa, minha presença corpórea já havia sido
detectada pelos sensores térmicos.
Vi os maços de celulose que meu amigo armazenava. Ele era
fanático por essa antiga tecnologia, apesar dos avisos correntes de ser
perigosa por altamente inflamável. Ele havia guardado exemplares mesmo após
o Grande Recolhimento, quando milhares de caixas de celulose foram incineradas
como biocombustível nas baterias urbanas. Outros exemplares ele adquiriu no
mercado negro.
Entre os maços de celulose estava aquele que ele mais
gostava de apresentar a seus contatos íntimos. Era um exemplar da Divina
Comédia, do poeta florentino Dante Alighieri. Tantas vezes ele havia folheado e
lido trechos desse maço para meu dispositivo de simulação. Achei estranho que o
maço estava com um marcador analógico. Não se usavam mais marcadores
analógicos. Provavelmente, ele também adquiriu um no mercado negro.
Apesar de estar no interior de um aparelho hermético, os
visores demonstravam a algaravia nos espaços do Fora. Apenas os bárbaros
sobreviviam nos espaços do Fora. Eles eram esquecidos, porém a eleição da
Tirania havia disparado o programa de perseguição aos bárbaros.
Eles primeiro perseguiriam os bárbaros implacavelmente
com o único objetivo de gerar o Terror. Depois viriam atrás de dispositivos
corporais críticos como meu “em-si”. Senti meu em-si vibrar como num calafrio.
Por que a Divina Comédia estava com um marcador
analógico? Este era o sinal do embaralhamento. Este era o código que eu
precisava decriptar. Mas não adiantavam meus decriptadores digitais para
resolver tal tarefa.
Havia marcas de grafite no marcador. E nele, escrito em
código de enlace, o nome “Mark Peterson”. O que tinha ele a ver com Dante Alighieri?
Fiz uma consulta secreta que me levou ao conceito de
“triesfera”. Descobri que o matemático Peterson, no século XXI, havia sido o
primeiro a lançar a hipótese de que Dante teria concebido as três esferas
celestiais, do Inferno, do Limbo e do Paraíso, conforme uma triesfera. E que
havia deixado passagens entre as três esferas na qual poder-se-ia atravessar de
uma a outra aleatoriamente, em ambas as direções. Assim, se podia ir do Paraíso ao Inferno sem
passar pelo Limbo e vice-versa.
Tratava-se de um assunto extremamente importante do qual a humanidade tinha se
esquecido.
Será que essa era a mensagem urgente que meu contato
afetivo havia deixado para mim? Meu em-si concordou positivamente. Mas o que
ela queria dizer? Como decriptá-la? Este era o problema. Não sabia como
responder, mas tive que voltar rapidamente ao meu locus doméstico, pois meus alarmes íntimos começaram a soar.
Já no meu doméstico, refleti no problema. Formulei-o do
seguinte modo: se Dante havia proposto um código de travessia direta e oculta
entre o Paraíso e o Inferno, por que ele nos deixara a sua famosa mensagem: Lasciate ogne speranza? Pois, se era
possível alcançar o Paraíso de qualquer ponto das esferas, eis aí a suprema e
definitiva esperança.
Depois de horas refletindo, com ajuda das próteses de
ampliação cognitiva, cheguei à seguinte formulação: podia-se passar do Inferno
ao Paraíso a qualquer momento, como o próprio poeta havia conseguido. O que não
era possível era deixar as três esferas. Elas eram a inexpugnável
fortaleza.
Foi então que me veio a revelação: a Triesfera, claro.
Dante só poderia ter observado conjuntamente as três esferas se as observasse
do lado do Fora. E como um hipercubo, a Triesfera só poderia ser imaginada numa
quarta dimensão. Essa tinha sido a mensagem derradeira que meu contato afetivo
havia deixado para mim: há sempre uma
dimensão extra.
O Fora era uma dimensão extra. Havia passagem. Para lá eu
deveria fugir. E de lá, assistiria o terrível espetáculo. É aí que está
guardada a esperança.
Eu
só tinha que quebrar o código da passagem. Mas é possível que meu contato
afetivo já o tivesse quebrado. A solução me veio logo: Lasciate ogne speranza. Era óbvio. Bastava convertê-lo para nosso
código de enlace. A solução foi rapidamente calculada e um código numérico me
foi sorteado. Era a chave do Portal.
Meu
contato afetivo havia me deixado toda a esperança. Talvez ele esteja lá, na
dimensão extra.
Eu
aposto que está.
(conto vencedor do encontro de 27/11/2018)
Guilherme Preger, engenheiro e escritor, já foi do paraíso ao inferno e retornou.
Que texto irado, velho. Sou apaixonado pelos vínculos das antiguidades com as descobertas científicas mais "recentes"; por sinal, acabei achando esse conto incrível numa busca mais aprofundada pela triesfera do Dante, e ainda bem que achei!
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