MEMÓRIAS DO ESQUECIMENTO -- PRÓLOGO, de Flávio Tavares
Primeiras visões
Os beijos que te dou tu não
sabes de onde vêm. São teus, do teu corpo e da tua alma, do mais profundo de
ti, sim, mas vêm daquele meu ego morto que só contigo renasceu. Pouco me ri e
muito mais sofri neste tempo todo. São 30 anos que esperei para escrever e
contar. Lutei com a necessidade de dizer e a absoluta impossibilidade de
escrever. A cada dia, adiei o que iria escrever ontem. A ideia vinha à memória,
mas, logo, logo, se esvaía naquele cansaço imenso que me fazia deixar tudo para
amanhã e jamais recomeçar. Tornei-me um esquizofrênico da memória ou de mim
mesmo: o que queria e desejava agora me impacientava em seguida e me cansava e
aborrecia logo adiante.
Tendo tudo para contar, sempre
quis esquecer. Por que lembrar o major torturador, os interrogatórios dias e
noites adentro? Por que trazer de volta aquele sabor metálico do choque
elétrico na gengiva, que me ficou na boca meses a fio? Por que lembrar a prisão
em Brasília ou no Rio de Janeiro ou nos quartéis de Juiz de Fora? Para que
recordar aquelas reuniões clandestinas, intermináveis, em que debatíamos na
ansiedade e nos aproximávamos uns aos outros como irmãos que brigam, se irritam
e se odeiam na fraternidade do perigo? Para que recordar a pressa urgente das
ações armadas, em que a audácia e a rapidez eram a nossa única arma imbatível
para compensar a improvisação e a inferioridade numérica e tecnológica? Para
que pensar na nossa entrega e aventureirismo? Para que lembrar a brutalidade da
ditadura – agora velha e carcomida – se, na época, nós mesmos só fomos admitir
e comprovar que era brutal, e absolutamente boçal, na dor do choque elétrico
nos perfurando o corpo?
Para que recordar o sequestro
do embaixador dos Estados Unidos, que nos libertou da prisão ou da morte, se a
partir daí - nesse triunfo concreto e frágil - a violência da ditadura se
acelerou e o país inteiro terminou aprisionado na imundície açucarada do seu
ventre? Para que recordar o México do exílio – que significou a libertação e a
liberdade – se de lá eu saí e fui viver o horror da Argentina dos anos 70, logo
outra vez a prisão no Uruguai, com requintes de uma crueldade que nem sequer
conheci no quartel da rua Barão de Mesquita, no Rio, na própria pele ou nos
gritos daquelas duas mulheres torturadas, que se expandiam na madrugada, como
se o inferno falasse?
Agora, quando roço tua pele, e
no silêncio te sinto estremecer, me pergunto para que invocar o exílio, aqueles
longos dez anos em que fomos os “banidos”, algo extravagante que nos obrigava a
vagar pelo mundo sem jamais poder voltar à pátria e ouvir teus sussurros ou
descobrir teus olhos verdes-azuis ao sol do lugar onde nasci.
Eu me lembro tanto de tanto ou
de tudo que, talvez por isso, tentei esquecer. Quando te amo, este amor enfurecido
de beijos e abraços ocupa todo o espaço da memória e, só então, vivo tranquilo
e em paz. Sim ,
minha amada, o que os meus olhos viram às vezes sinto vontade de cegar.
Esquecer? Impossível, pois o
que eu vi caiu também sobre mim, e o corpo ou a alma sofridos não podem evitar
que a mente esqueça ou que a mente lembre. Sou um demente escravo da mente.
Rima? Rima, sim, e até pode ser
uma rima, mas não é uma solução. A única solução é não esquecer.
E por não esquecer te conto,
minha amada. Como um grito te conto. Ouve e lê.
Flávio
Tavares,
nascido em 1934 em Lajeado-RS, foi jornalista da Última
Hora. Opositor da ditadura brasileira,
foi preso por três vezes. Da terceira prisão, foi libertado em consequência das
negociações do sequestro do embaixador dos Estados Unidos, em 1969. Banido do
Brasil, trabalhou no jornal mexicano Excelsior e como correspondente
(escrevendo sob pseudônimo) do jornal O Estado de São Paulo. Em 1977, foi preso
em Montevidéu por militares ligados à repressão uruguaia. Libertado por pressão
de um grande movimento de pressão internacional, viveu em Lisboa até a anistia.
O texto acima é o prólogo de seu
livro Memórias do esquecimento – os segredos dos porões
da ditadura. Rio de Janeiro : Record,
2005. 5ª edição.
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