Frankenstein, ou o Moderno Prometeu, de Mary Shelley

A criatura acabou de falar, e fixou seus olhos em mim à espera de uma resposta, mas eu estava perplexo, confuso e incapaz de organizar minhas ideias para entender toda a extensão de sua proposta. Ele continuou:

“Você tem que criar uma fêmea para mim, com quem eu possa viver numa harmonia compatível com as necessidades de meu ser. Isso, só você pode fazer. Eu o exijo como um direito que você não pode recursar.”

A última parte de seu relato reacendera novamente minha ira, que havia se extinguido quando ele narrara sua vida pacífica entre os moradores do chalé, e, quando ele disse aquilo, já não pude conter a raiva que quiemava dentro de mim.

“Eu recuso”, respondi; “e nenhuma tortura jamais arrancará de mim um consentimento. Você pode me tornar o mais infeliz dos homens, mas nunca conseguirá aviltar-me a meus próprios olhos. Criar uma outra criatura como você, cuja maldade conjunta poderia devastar o mundo? Vai embora! Já lhe respondi. Mesmo que me torture, eu jamais concordarei.”

“Está cometendo”, respondeu o diabo. “E, em vez de ameaçar, estou satisfeito de argumentar com você. Sou mau porque sou infeliz; não sou rechaçado e odiado por toda a humanidade? Você, meu criador, seria capaz de me partir em pedaços e triunfar; lembra-se disso, e me diga porque deveria ter mais compaixão pelos homens do que a que eles têm por mim? Se pudesse atirar-me num desses precipícios de gelo e destruir meu corpo; obra de suas próprias mãos, não chamaria de crime. Devo respeitar o homem, quando ele me despreza? Se convivesse comigo em mútua bondade, eu, em vez de prejudicá-lo, o beneficiaria, derramando lágrimas de gratidão por ter sido aceito. Mas é impossível; os sentidos humanos constituem barreiras intransponíveis à nossa união. Assim, não me submeterei a uma escravidão abjeta. Vingarei minhas injúrias: se não puder inspirar amor, provocarei medo; e especialmente a você, meu arqui-inimigo, pois é meu criador, juro com ódio inextinguível. Cuidado: trabalhei para sua destruição, e não terminarei até que seu coração esteja tão devastado que o faça amaldiçoar a hora em que nasceu”.

Ao dizer isso, uma raiva diabólica inflamava-o; seu rosto era crispado por contorções horríveis demais para serem contempladas por olhos humanos. Logo, porém, ele se acalmou e prosseguiu:

“Eu pretendia argumentar. Essa raiva me é prejudicial, pois você não parece ver que é a causa desses excessos. Se alguma criatura tivesse sentimentos de bondade para comigo, eu os retribuiria centenas e centenas de vezes, e, pelo bem dessa única criatura, faria as pazes com toda a espécie! Mas eu agora estou me permitindo sonhos felizes, que não podem se realizar. O que eu lhe peço é razoável e moderado; exijo uma criatura de outro sexo, mas tão horrível quanto eu. A satisfação é pequena, mas é tudo que posso receber e ficarei satisfeito. É verdade que seremos monstros, isolados do resto do mundo, mas por esse mesmo motivo seremos mais ligados um ao outro. Nossa vida não será feliz, mas será inofensiva, e livre da infelicidade que agora eu sinto. Ó! Meu criador, Faça-me feliz. Permita que eu possa sentir gratidão por você por esse único benefício! Permita que eu desperte a simpatia de algum ser vivo. Não me negue esse pedido!”

SHELLEY, Mary. Frankenstein ou o Moderno Prometeu. São Paulo: editora Landmark, 2016. Capítulo IX, pp. 207-209

Mote vencedor do encontro de 20/02/2018 







Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Vamos comprar um poeta, por Afonso Cruz

Homens não choram

Cultura: uma visão antropológica, de Sidney W. Mintz