Cló, de Lima Barreto
CLÓ
O doutor Maximiliano bebeu ainda
uma cerveja e, acabada que foi a cerveja, saiu vagarosamente um tanto trôpego.
A noite já tinha caído de há
muito. Era já noite fechada. Os cordões e os bandos carnavalescos continuavam a
passar, rufando, batendo, gritando desesperadamente. Homens e mulheres de todas
as cores - os alicerces do país - vestidos de meia, canitares e enduapes de
penas multicores, fingindo índios, dançavam na frente ao som de uma zabumbada
africana, tangida com fúria em instrumentos selvagens, roufenhos, uns,
estridentes, outros. As danças tinham luxuriosos requebros de quadris, uns
caprichosos trocar de pernas, umas quedas imprevistas.
Aqueles fantasiados tinham
guardado na memória muscular velhos gestos dos avoengos, mas não mais sabiam
coordená-los nem a explicação deles. Eram restos de danças guerreiras ou
religiosas dos selvagens de onde a maioria deles provinha, que o tempo e outras
influências tinham transformado em palhaçadas carnavalescas...
Certamente, durante os séculos de
escravidão, nas cidades, os seus antepassados só se podiam lembrar daquelas
cerimônias de suas aringas ou tabas, pelo carnaval. A tradição passou aos
filhos, aos netos, e estes estavam ali a observá-la com as inevitáveis
deturpações.
Ele, o doutor Maximiliano, apaixonado
amador de música, antigo professor de piano, para poder viver e formar-se,
deteve-se um pouco, para ouvir aquelas bizarras e bárbaras cantorias, pensando
na pobreza de invenção melódica daquela gente. A frase, mal desenhada, era
curta, logo cortada, interrompida, sacudida pelos rufos, pelo ranger, pelos
guinchos de instrumentos selvagens e ingênuos. Um instante, ele pensou em
continuar uma daquelas cantigas, em completá-la; e a ária veio-lhe inteira, ao
ouvido, provocando o antigo professor de música a fazer parar o 'Chuveiro de
Ouro", a fim de ensinar-lhes, aos cantores, o que a imaginação lhe havia
trazido à cabeça naquele momento.
Arrependeu-se que tivesse fito
gostar daquela barulhada; porém, o amador de música vencia o homem desgostoso.
Ele queria que aquela gente entoasse um hino, uma cantiga, um canto com
qualquer nome, mas que tivesse regra e beleza. Mas - logo imaginou - para quê?
Corresponderia a música mais ou menos artística aos pensamentos íntimos deles?
Seria mesmo a expansão dos seus sonhos, fantasias e dores?
E, devagar, se foi indo pela rua
em fora, cobrindo de simpatia toda a puerilidade aparente daqueles esgares e
berros, que bem sentia profundos e próprios daquelas criaturas grosseiras e de
raças tão várias, mas que encontravam naquele vozerio bárbaro e ensurdecedor
meio de fazer porejar os seus sofrimentos de raça e de indivíduo e exprimir
também as suas ânsias de felicidade.
Encaminhou-se direto para a casa.
Estava fechada; mas havia luzes na sala principal, onde tocavam e dançavam.
Atravessou o pequeno jardim,
ouvindo o piano. Era sua mulher quem tocava; ele o adivinhava pelo seu velouté,
pela maneira de ferir as notas, muito docemente, sem deixar quase perceber a
impulsão que os dedos levavam. Como ela tocava aquele tango! Que paixão punha
naquela música inferior!
Lembrou-se então dos
"cordões", dos "ranchos", das suas cantilenas ingênuas e
bárbaras, daquele ritmo especial a elas que também perturbava sua mulher e
abrasava sua filha. Por que caminho lhes tinha chegado ao sangue e à carne
aquele gosto, aquele pendor por tais músicas? Como havia correlação entre elas
e as almas daquelas duas mulheres?
Não sabia ao certo; mas viu em
toda a sociedade complicados movimentos de trocas e influências - trocas de
idéias e sentimentos, de influências e paixões, de gostos e inclinações.
Quando entrou, o piano cessava e
a filha descansava, no sofá, a fadiga da dança lúbrica que estivera ensaiando
com o irmão. O velho ainda ouviu indulgentemente o filho dizer:
- É assim que se dança nos Democráticos.
Cló, logo que o viu, correu a
abraçá-lo e, abraçada ao pai, perguntou:
- André não vem?
-Virá.
Mas, logo, em tom severo,
acrescentou:
- Que tem você com André?
- Nada, papai; mas ele é tão
bom...
Quis Maximiliano ser severo; quis
apossar-se da sua respeitável autoridade de pai de família; quis exercer o
velho sacerdócio de sacrificador aos deuses penates; mas era céptico demais,
duvidava, não acreditava mais nem no seu sacerdócio nem no fundamento da sua
autoridade. Ralhou, entretanto, frouxamente:
- Você precisa ter mais
compostura, Cló. Veja que o doutor André é casado e isto não fica bem.
A isto, todos entraram em
explicações. O respeitável professor foi vencido e convencido de que a afeição
da filha pelo deputado era a cousa mais inocente e natural deste mundo. Foram
jantar. A refeição foi tomada rapidamente. Fred, contudo, pôde dar algumas
informações sobre os préstitos camavalescos do dia seguinte. Os Fenianos
perderiam na certa. Os Democráticos tinham gasto mais de sessenta contos e
iriam pôr na rua uma cousa nunca vista. O carro do estandarte, que era um
templo japonês, havia de fazer um "bruto sucesso”. Demais, as mulheres
eram as mais lindas, as mais bonitas... Estariam a Alice, a Charlotte, a
Lolita, a Cármen...
- Ainda toma muito cloral? perguntou
Cló.
- Ainda, retrucou o irmão; e
emendou: vai ser uma lindeza, um triunfo, à noite, com luz elétrica, nas ruas
largas...
E Cló, por instantes, mordeu os
lábios, suspendeu um pouco o corpo e viu-se também, no alto de um daqueles
carros, iluminada pelos fogos-de-bengala, recebida com palmas, pelos meninos,
pelos rapazes, pelas moças, pelas burguesas e burgueses da cidade. Era o seu
triunfo a meta de sua vida; era a proliferação imponderável de sua beleza em
sonhos, em anseios, em idéias, em violentos desejos naquelas almas pequenas,
sujeitas ao império da convenção, da regra e da moral. Tomou a cerveja, todo o
copo de um hausto, limpou a espuma dos lábios e o seu ligeiro buço surgiu lindo
sobre os breves lábios vermelhos. Em seguida, perguntou ao irmão:
- E essas mulheres ganham?
- Qual! Você não vê que é uma
honra? respondeu-lhe o irmão.
E o jantar acabou sério e
familiar, embora a cerveja e o vinho não tivessem faltado aos devotos de cada
uma das duas bebidas.
Logo que a refeição acabou,
talvez uns vinte minutos após, o doutor André se fazia anunciar. Desculpou-se
com as senhoras; não pudera vir jantar, questões políticas, uma conferência...
Pedia licença para oferecer aquelas pequenas lembranças de Carnaval. Deu uma
pequena caixa a dona Isabel e uma maior à Cló. As jóias saíram dos escrínios e
faiscaram orgulhosamente para todos os presentes deslumbrados. Para a mãe, um
anel; para a filha, um bracelete.
- Oh, doutor! fez dona Isabel. O
senhor está a sacrificar-se e nós não podemos consentir nisto...
- Qual, dona Isabel! São falsas,
nada valem... Sabia que dona Clódia ia de "preta mina" e lembrei-me
trazer-lhe este enfeite...
Cló agradeceu sorridente a
lembrança e a suave boca quis fixar demoradamente o longo sorriso de alegria e
agradecimento. E voltaram a tocar. Dona Isabel pôs-se ao piano e, como tocasse
depois da sobremesa, hora da melancolia e das discussões transcendentes, como
já foi observado, executou alguma cousa triste.
Chegava a ocasião de se
prepararem para o baile à fantasia que os Silvas davam. As senhoras
retiraram-se e só ficaram, na sala, os homens, bebendo uísque. André,
impaciente e desatento; o velho lente, indiferente e compassivo, contando
histórias brejeiras, com vagar e cuidado; o filho, sempre a procurar caminho
para exibir o seu saber em cousas carnavalescas. A conversa ia caindo, quando o
velho disse para o deputado:
- Já ouviu a Bamboula, de
Gottschalk, doutor?
- Não... Não conheço.
- Vou tocá-la.
Sentou-se ao piano, abriu o álbum
onde estava a peça e começou a executar aqueles compassos de uma música negra
de Nova Orleans, que o famoso pianista tinha filtrado e civilizado.
A filha entrou, linda, fresca,
veludosa, de pano da Costa ao ombro, trunfa, com o colo inteiramente nu, muito
cheio e marmóreo, separado do pescoço modelado, por um colar de falsas
turquesas. Os braceletes e as miçangas tilintavam no peito e nos braços, a bem
dizer totalmente despidos; e os bicos de crivo da camisa de linho rendavam as
raízes dos seios duros que mal suportavam a alvíssima prisão onde estavam
retidos.
Ainda pôde requebrar, aos últimos
compassos da Bamboula, sobre as chinelas que ocupavam a metade dos pés; e toda
risonha sentou-se por fim, esperando que aquele Salomão de pince-nez de ouro
lhe dissesse ao ouvido:
"Os teus lábios são como uma
fita de escarlate; e o teu falar é doce. Assim como é o vermelho da romã
partida, assim é o nácar das tuas faces; sem falar no que está escondido
dentro".
O doutor Maximiliano deixou o
tamborete do piano e o deputado, bem perto de Clódia, se não falava como o rei
Salomão à rainha de Sabá dilatava as narinas para sorver toda a exalação acre
daquela moça, que mais capitosa se fazia dentro daquele vestuário de escrava
desprezada.
A sala encheu-se de outros
convidados e a sessão de música veio a cair na canção e na modinha. Fred cantou
e Cló, instada pelo doutor André, cantou também. O automóvel não tinha chegado;
ela tinha tempo...
Dona Isabel acompanhou; e a moça,
pondo tudo o que havia de sedução na sua voz, nos seus olhos pequenos e
castanhos, cantou a "Canção da Preta Mina":
Pimenta
de cheiro, jiló, quibombô; Eu vendo barato, mi compra ioiô!
Ao acabar, era com prazer
especial, cheia de dengues nos olhos e na voz, com um longo gozo intimo que
ela, sacudindo as ancas e pondo as mãos dobradas pelas costas na cintura,
curvava-se para o doutor André e dizia vagamente:
Mi
compra ioiô!
E repetia com mais volúpia, ainda
uma vez:
Mi
compra ioiô!
******
Cló:
Lima Barreto, in: Seleção de Contos do Rio de Janeiro, org. Raimundo Magalhães
Jr. Rio de Janeiro, Edições de Ouro, 1967. p. 205-10.
Afonso
Henriques de Lima Barreto,
(Rio de Janeiro, 13 de maio de 1881 — Rio de Janeiro, 1 de novembro de 1922)
mais conhecido como Lima Barreto, foi um jornalista e escritor que publicou
romances, sátiras, contos, crônicas e uma vasta obra em periódicos,
principalmente em revistas populares ilustradas e periódicos anarquistas do
início do século XX. A maior parte de sua obra foi redescoberta e publicada em
livro após sua morte por meio do esforço de Francisco de Assis Barbosa e outros
pesquisadores, levando-o a ser considerado um dos mais importantes escritores
brasileiros.
Fonte Wikipedia
Mote
lido por André Salviano para o encontro do dia 20 de março de 2018
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