A Marcha de Alberto, de Bruno Flores
A
marcha de Alberto
O
velho almirante Braga abria caminho na multidão entre o Gandhi, a Marilyn
Monroe e o Saci Pererê. Corpos suados bailavam entre confetes e serpentinas, enquanto
uma colorida bola de praia era estapeada pra lá e cá sobre o mar de cabeças. Uma
fadinha purpurinada passava em pernas-de-pau, outra balançava um bambolê e
homens vestidos de noivas, baianas e quengas tocavam instrumentos. Era a
vitória inquestionável da insanidade coletiva. Afinal, não se tratava de um
pesadelo nem o velho almirante estava alucinando ou ficando gagá. Era, sim, aquele
período em que a cidade obtinha o alvará da vagabundagem para cinco dias de
embriaguez, galhofa e sem-vergonhice. Era o maldito carnaval carioca.
O teu
cabelo não nega mulata
Porque és mulata na cor
Mas como a cor não pega mulata
Mulata eu quero o teu amor
Porque és mulata na cor
Mas como a cor não pega mulata
Mulata eu quero o teu amor
A
marchinha trouxe lembranças dos bailes de gala no Teatro Municipal, ele e os colegas
de escola naval vestindo fraques elegantes, as mulheres brilhando em fantasias
de Cleópatra. Tempos de alegrias comedidas, sem drogas ou libertinagem, rumo à
estabilidade. Quando se casou com Marieta, a sensação de dever cumprido no
âmbito pessoal o permitiu dedicar-se a sua outra obrigação, comandando corvetas
pelo Rio Negro e São Francisco e, mais tarde, nos círculos de gabinete da
política.
O
tempo era mesmo uma amante inescrupulosa, despia-nos de tudo e arruinava nossa
existência. Hoje, a simples troca de uma lâmpada lhe exigia um esforço
sobre-humano.
Tens
um sabor bem do Brasil
Tens a alma cor de anil
Mulata mulatinha meu amor
Fui nomeado teu tenente interventor
Tens a alma cor de anil
Mulata mulatinha meu amor
Fui nomeado teu tenente interventor
O
almirante sempre fora entusiasta da boa e velha ironia, mas essa, que o destino
miserável lhe imputava, era demais até pra ele. Aquela mesma marchinha, criada
por uma geração que sonhara com um Brasil progressista, agora era entoada por
esses baitolas e imbecis que deviam estar atrás das grades por perturbação da
ordem pública. Como haviam se enganado! Anos e anos tentando limpar a merda
desse país, para que no final os bueiros fossem abertos e a podridão se instalasse
como musgos sobre a terra. Que esgoto a céu aberto! Sentiu o rosto em chamas,
uma fúria que lhe varria as vísceras, e bendisse sua sorte por não ter trazido
o trinta e oito. Se tivesse, esvaziaria o tambor para pôr fim àquele ultraje.
Um
rapaz fantasiado de sheik árabe chacoalhava o esqueleto com cerveja na mão. O
almirante se deu conta de que lembrava muito o Henrique: mesmo tipo franzino, mesmo
olhar de palerma. Deu uma trombada violenta no moleque, que foi ao chão levando
outros dois junto com ele, como num jogo de dominó.
-
Qual é coroa!?
-
Calma ai, meu senhor!
-
É carnaval...
Entrou
em casa e reparou que haviam jogado uma carta debaixo da porta. Pegou o
envelope e leu seu nome precedido por uma fina tinta de ironia: “Almirante”.
Paralisou
em pânico. Era a letra, a inconfundível letra de Henrique.
Caminhou
com dificuldade até a cozinha, as pernas ameaçando ruir como colunas seculares,
e encheu o copo de Jack Daniels. Agora, o vinho do porto simplesmente não daria
conta. Virou metade da dose, rasgou o envelope e começou a ler a carta, mas
parou quando o copo de uísque espatifou no assoalho.
Encarou
o vazio por alguns minutos, neurônios pipocando por terrenos baldios da memória,
até o som da marchinha resgata-lo das profundezas. Andou feito um zumbi até a
cômoda da sala, tirou o trinta e oito da gaveta e saiu à varanda.
O
bloco estava parado bem em frente ao seu prédio, oculto sob a copa das árvores.
Ó
jardineira porque estás tão triste
Mas o que foi que te aconteceu
Foi a camélia que caiu do galho
Deu dois suspiros e depois morreu
Mas o que foi que te aconteceu
Foi a camélia que caiu do galho
Deu dois suspiros e depois morreu
Engatilhou
e disparou um tiro em cada direção, conscientemente, numa insanidade ordenada.
Voltou para dentro, alheio aos gritos de desespero, e sentou-se na cadeira com
o revólver no colo. O olhar, perdido no porta-retratos, buscou viajar no tempo:
ele, de farda branca e quepe da Marinha, Marieta num vestido austero de dona de
casa, Antônio com oito anos e o pequeno Henrique, com quatro, camisa do
Botafogo, shorts e meião, o único que não olhava para a câmera, encarando de
cenho franzido algo que apenas ele enxergava. Mais atrás, atracada na base
naval de Aratu, via-se a Fragata Niterói, que Alberto estava prestes a comandar
pela baía de Todos-os-Santos.
O
porteiro e a polícia irromperiam porta adentro pouco depois, levando o velho almirante
para uma jornada sem volta.
No
carnaval seguinte, o bloco da Glória levou centenas de foliões às ruas. Ninguém
se lembrava do velho militar aposentado que morava no prédio da esquina, sujeito
rabugento que vira e mexe arrumava briga com vizinhos e comerciantes. Nem ao
menos se lembravam da tragédia que dera cabo de sua vivência por ali e que na
época inundara os jornais e tabloides sensacionalistas: o almirante descarregara
um revolver da varanda, matando dois jovens fantasiados de Raul Seixas e Bob
Marley, que acompanhavam o cortejo. Condenado a vinte anos de prisão, foi
negado o regime semiaberto, apesar das limitações da idade. A pena, contudo,
foi encurtada pelo próprio almirante, habituado a comandar seu destino como se
fossem navios de guerra, graças a uma navalha surrupiada para dentro do
presídio pelo filho de um colega de farda. Um corte limpo na garganta e pronto,
missão cumprida.
Ah
sim, o surto do velho na varanda supostamente ocorrera após a descoberta do
suicídio de seu filho esquizofrênico. Mas disso tampouco ninguém se lembrava,
uma vez que a Terra já completava uma volta em torno do sol e os deuses da “embriaguez,
galhofa e sem-vergonhice” nos traziam um novo carnaval.
(Conto vencedor do encontro de 20/02/2018)
Bruno Flores publicou o romance “Rumah” (Multifoco, 2015), aventura épica sobre um povo neolítico do Pacífico Sul. Tem dois artigos em livro de homenagem ao centenário de Jorge Amado e contos em revistas literárias, portais e blogs.
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