O Corpo imóvel, de Lilian Piraine Laranja

Despertou de um sonho de delírios, cujos eventos eram grotescos e encadeados em uma ordem irreal. Ao abrir os olhos, o ambiente demasiadamente branco ofuscou sua visão. Vultos se moviam, e nada compreendeu de suas vozes distantes. Escutava somente murmúrios ao invés de frases. Seu corpo estava inerte e podia sentir o peso da própria imobilidade. Aceitou aquela condição por instantes, sem qualquer queixa. Até mesmo falar lhe exigiria esforço, e o sono ainda rondava sua lucidez.
Já se esquecera do sonho. Estava sobre uma cama e lhe tiravam a camisola. Viu traços de sangue nos panos que a descobriam, vermelho escuro e seco. Especulou sobre a origem daquelas manchas. O corte que iniciara os procedimentos, seguindo protocolos aprimorados ao longo de séculos - sem dúvida, a opção mais segura. Ou teria sido um acidente, uma hemorragia imprevista, um procedimento mal executado? Aqueles vestígios a lembraram de que não havia cura possível sem algum tipo de intervenção. Não tinha conhecimento do que havia sido feito, das reais intervenções a que seu organismo fora submetido e como entenderia aqueles sinais fisiológicos.
Estava completamente nua e podia enxergar melhor, mas não encarava as pessoas que a rodeavam, não queria ver seus rostos. Sentiu uma espuma gelada em sua perna direita, a sensação desceu aos pés, que foram massageados e limpos, e depois subiu em círculos até suas coxas. Olhou as mãos que moviam a esponja e viu que eram pequenas e rápidas, cobertas por luvas brancas. Fechou os olhos porque começava a sentir uma dor aguda no abdômen. Mãos fortes a seguraram no torso e também nas pernas, deslocando seu corpo para a direita. Limparam suas costas e depois a moveram para a esquerda. Temeu a higiene no lado esquerdo onde havia sofrido a incisão.
A movimentação a cansou, ainda que fosse um procedimento feito de forma burocrática - um rito em que os tempos estavam inconscientemente marcados e se repetiam a cada paciente. Rápidos, contínuos, gelados. A ideia dessa rotina de movimentos em corpos doentes a preveniu de sentir qualquer pudor - compreendeu então que o pudor é de natureza circunstancial. O seu corpo era apenas mais um corpo. Mãos estranhas a reviraram e ensaboaram, como se fosse uma boneca, uma reprodução de ser humano, feita de uma matéria inerte. Era o que havia se tornado enquanto sofria a intervenção e sua consciência estava posta em suspenso: um corpo despertencido de si, sem vontade própria, munido apenas de suas atividades biológicas mais básicas, entregue aos profissionais. Confiara que lhe fariam o melhor, e sentiu medo de sua própria inclinação para confiar. Pareceu-lhe um mistério toda a esperança investida em uma agressão consentida e estudada, que podia dar errado.

Passaram um lenço úmido em seu rosto com delicadeza. Aquele gesto foi como um carinho, como uma mensagem de que seu corpo não era um boneco. Nem para eles. Olhou para quem estava umedecendo seu rosto e viu que era um rapaz. Falava com ela, pode entender que lhe perguntava como se sentia. Era um sinal de que expressava vida em seus olhos, o que a deixou feliz. Não conseguiu responder, ainda não estava pronta. No fundo do quarto, uma moça arrumava os lençóis e preparava uma camisola limpa. Pentearam seus cabelos, eram fios curtos e finos, ficaram arrumados para o lado de que gostava, o que a deixou encabulada e agradecida. Mas não quis pedir um espelho.

(Conto vencedor do encontro de 02/05/2017)

 Lilian Piraine Laranja nasceu em Porto Alegre, em 1982. Ama literatura e tem contos publicados em duas antologias de oficinas literárias (2005 e 2012). 





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