A alma encantadora das ruas, João do Rio
Neste elogio talvez fútil, considerei a rua um ser vivo, tão poderoso que
consegue modificar o homem insensivelmente e fazê-lo o seu perpétuo escravo
delirante, e mostrei mesmo que a rua é o motivo emocional da arte urbana mais
forte e mais intenso. A rua tem ainda um valor de sangue e de sofrimento: criou
um símbolo universal. Há ainda uma rua, construída na imaginação e na dor, rua
abjeta e má, detestável e detestada, cuja travessia se faz contra a nossa
vontade, cujo trânsito é um doloroso arrastar pelo enxurro de uma cidade e de
um povo. Todos acotovelam-se e vociferam aí, todos, vindos da rua da Alegria ou
da rua da Paz, atravessando as betesgas (viela, rua estreita) do Saco do
Alferes ou descendo de automóvel dos bairros civilizados, encontram-se aí e aí
se arrastam, em lamentações, em soluços, em ódio à Vida e ao Mundo. No traçado
das cidades ela não se ostenta com as suas imprecações e os seus rancores. É
uma rua esconsa e negra, perdida na treva, com palácios de dor e choupanas de
pranto, cuja existência se conhece não por um letreiro à esquina, mas por uma
vaga apreensão, um irredutível sentimento de angústia, cuja travessia não se
pode jamais evitar. Correi os mapas de Atenas, de Roma, de Nínive ou de
Babilônia, o mapa das cidades mortas. Termas, canais, fontes, jardins
suspensos, lugares onde se fez negócio, onde se amou, lugares onde se se
cultuaram os deuses — tudo desapareceu. Olhai o mapa das cidades modernas. De
século em século a transformação é quase radical. As ruas são perecíveis como
os homens. A outra, porém, essa horrível rua de todos conhecida e odiada, pela
qual diariamente passamos, essa é eterna como o medo, a infâmia, a inveja.
Quando Jerusalém fulgia no seu máximo esplendor, já ela lá existia. Enquanto em
Atenas artistas e guerreiros recebiam ovações, enquanto em Roma a multidão
aplaudia os gladiadores triunfais e os césares devassos, na rua aflitiva
cuspinhava o opróbrio e chorava a inocência. Cartago tinha uma rua assim, e
ainda hoje Paris, New York, Berlim a têm, cortando a sua alegria, empanando o
seu brilho, enegrecendo todos os triunfos e todas as belezas. Qual de vós não
quebrou, inesperadamente, o ângulo em arestas dessa rua? Se chorastes, se
sofrestes a calúnia, se vos sentistes ferido pela maledicência, podereis ter a
certeza de que entrastes na obscura via! Ah! Não procureis evitá-la! Jamais o
conseguireis. Quanto mais se procura dela sair mais dentro dela se sofre. E não
espereis nunca que o mundo melhore enquanto ela existir.
Não é uma rua onde sofrem apenas alguns entes, é a rua
interminável, que atravessa cidades, países, continentes, vai de pólo a pólo;
em que se alanceiam todos os ideais, em que se insultam todas as verdades, onde
sofreu Epaminondas e pela qual Jesus passou. Talvez que extinto o mundo,
apagados todos os astros, feito o universo treva, talvez ela ainda exista, e os
seus soluços sinistramente ecoem na total ruína, rua das lágrimas, rua do
desespero — interminável rua da Amargura...
In: RIO, João do. A alma
encantadora das ruas. São Paulo: Companhia de Bolso, 2008, p.51-52.
(Mote
lido por Carmen Belmont para o encontro de 13.06.17)
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Paulo Barreto (João Paulo Emílio Cristóvão dos Santos Coelho
Barreto; pseudônimo literário: João do Rio), jornalista, cronista, contista e
teatrólogo, nasceu no Rio de Janeiro, RJ, em 5 de agosto de 1881, e faleceu na
mesma cidade em 23 de junho de 1921. Eleito em 7 de maio de 1910 para a Cadeira
n. 26 da Academia Brasileira de Letras, na sucessão de Guimarães Passos, foi
recebido em 12 de agosto de 1910, pelo acadêmico Coelho Neto.
Obras: As religiões do Rio, reportagens (1905); Chic-chic,
teatro (1906); A última noite, teatro (1907); O momento literário, inquérito
(1907); A alma encantadora das ruas, crônicas (1908); Cinematógrafo, crônicas
(1909); Dentro da noite, contos (1910); Vida vertiginosa, crônicas (1911); Os dias passam, crônicas (1912); A bela madame Vargas, teatro
(1912); A profissão de Jacques Pedreira, novela (1913); Eva, teatro (1915);
Crônicas e frases de Godofredo de Alencar (1916); No tempo de Wenceslau,
crônicas (1916); A correspondência de uma estação de cura, romance (1918); Na
conferência da paz, inquérito (1919); A mulher e os espelhos, contos (1919).
Fonte:
Academia Brasileira de Letras.
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