O Duelo, por Camilla Agostini

O duelo

Era daquelas cozinhas grandes de fazenda antiga, nunca esqueço. Tinha umas panelas de ferro penduradas em cima do fogão e uma brasinha sempre queimando. Num armário de canto ficavam guardados uns pratos finos da família, que só usavam na hora do jantar. No meio ficava um mesão de madeira muito pesado, daqueles difíceis de arrastar, com todo tipo de comida que era feita todo dia. Tigela com leite, batata descascada, um monte de farinha, uma galinha degolada, coisas assim.

Eu costumava chegar de mansinho, gostava de espiar a cozinheira grandona mexendo nas panelas, sempre a espreita pelo feijão preto que, requentado, ficava ainda melhor. Espichava o olho sempre para as três coisas mais importantes da cozinha: a panela de feijão, a cozinheira e umas cumbucas empilhadas numa prateleira. Era tudo muito simples: distrair a velha, pegar uma cumbuca e correr com o feijão.

Pensa que era fácil? Ela não parava quieta. Às vezes, fazendo meu plantão de espia do lado de fora, me distraía, roubando uns biscoitos que ficavam esfriando num alambrado, ao lado do forno de barro. Quando ela dava falta dos biscoitos praguejava e eu, ali escondido, ria baixinho.

De uma feita, me lembrei de um truque que havia de espantar a velha da cozinha, pra bem longe da panela. Sem ela ver, coloquei misturado no fumo, que ela pitava num cachimbo, um pouco de pólvora e fiquei ali, de olho vivo, na espia. Não demorou e a vi chegar com um tição de fogo na mão, cachimbo na boca e... buuummmmm! O estouro foi tão alto e a correria tanta que nem ouviram as minhas gargalhadas. Toda suja de carvão e com palpitações do susto, fez chamar toda a gente da casa para acudir. A cozinha ficou um rebuliço só e o feijão ainda mais longe da minha barriga magrela. Mas valeu o susto, foi de rir até faltar o ar.

Numa outra manhã, o feijão já estava curtindo há uns três dias, o que me fazia salivar e saltitar os olhos na direção da panela. Arranjei então um vento daqueles tremendos. Fiz até revirar um redemoinho para distrair a velha, que ficou olhando pela janela. Era a minha deixa. Mas pensa que era fácil enganar aquela velha gorducha? Nada. Eu já estava com a mão na cumbuca e quem quase me pegou no laço foi ela, quando tirou um rosário que ficava pendurado num preguinho na parede da cozinha e jogou no redemoinho para me prender. Foi por pouco. Tive que, rapidinho, dispersar.

Já com o estômago revirado nas costas e os olhos secos, fixos de agonia para aquele panelão, resolvi por uma missão de noitinha, que afastaria aquela lá do santo recinto, ao menos por alguns instantes na manhã seguinte. O resultado da minha, modéstia a parte, excelente ideia, foi ter dado um nó de tripa na crista do burrico do pai Joaquim. O bichano amanheceu que parecia um trelelê doido e pai Joaquim se achegou à porta da cozinha, pedindo uma tesoura grande, para cortar os nós. Mas a danada parecia que tinha uns cinco olhos. Com dois tratava do burrico, com dois ficava espiando tudo em volta, já sabendo que eu estava por perto, e mais um outro deixava bem atento só para a panela do feijão.
Nada feito, e eu já injuriado ouvia roncar meu estômago por causa daquela velha sovina. Agachei quietinho atrás do forno de barro dos biscoitos, que ficava do lado de fora, me contentando em comer aquela maçaroca branca e seca sem gosto de coisa nenhuma. A danada ia e vinha, batia ovos no muque, arrancava tripa de porco e, de uma feita, quase chegou em mim uma panelada de água suja que ela despachou janela à fora. Eu lá, agachadinho, comendo a maçaroca e sonhando com o pretinho do feijão!..
De tanto vai e vem, de repente, notei um silêncio. Fiquei quieto para ouvir melhor. Nada mesmo. Espiei pela fresta da janela. Lá estava ela, parecia que derretia de calor, cochilando numa cadeira.



Quando acordou aquela senhora que, de tantos afazeres, se orgulhava da organização da sua cozinha, estranhou um pedaço de pano vermelho no chão. Com cara de interrogação abaixou os quartos e viu que era uma touca. Chegou-se à porta e com a mão de zanga na cintura viu pelo chão do terreiro as pegadas de um pé só, rumo à capoeira, e, aqui e ali, o feijão que ia se esparramando junto. Voltando para a lida, ela então bufou – Danado de perneta!

Conto vencedor do encontro de 21/02/2017

Camilla Agostini é arqueóloga e professora na Universidade do Estado do Rio de Janeiro.






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